Não se apreende um
poema numa primeira leitura. Poesia é bebida a ser sorvida lentamente pois,
devido ao seu alto teor poetílico, não se a saboreia num gole apenas. É algo
assim como o prato da vingança, uma iguaria que exige tempo e frieza para ser
saboreada. Um poema não se entrega à primeira vista, não totalmente. Deixa-se
ver, seduz, atrai, mas não se mostra aos apressados. Nunca. Uma espécie de cavalo
selvagem pronto a derrubar o primeiro cavaleiro incauto, inculto, que ouse
montá-lo. Que dizer então de uma antologia? Da reunião de diversos desses
acepipes maravilhosos num banquete da linguagem? A leitura lenta e prazerosa de
“Desdizer”, poemas reunidos de Antonio Carlos Secchin (Topbooks, 2017), tem me
conduzido por caminhos surpreendentes. Vejo-me, pé ante pé, tocando a pele de
seus versos, sempre desconfiado da capa de beleza aparente que teima em
esconder ainda mais beleza no que oculta. Se o manifesto encanta, o latente
arrebata. Na travessia que iniciei muito recentemente na poética desse ensaísta
e acadêmico, obriguei-me a cumpri-la a lerdos passos, pois se o poeta é mesmo
um fingidor, avalie o poeta que é teórico e crítico e que domina a palavra como
quem domina um potro selvagem, nela montando e fazendo-a manter o trote ou o
galope a seu bel prazer. Um leitor inseguro é sujeito provável a saborear o
tombo, daí a necessidade de ser lento e atento. O volume condensa grande parte
da produção poética do autor, cobrindo um período que vai de 1969 a 2017. São
aforismos e versos que se espelham e refletem o que de melhor se fez na poesia do
fim do século XX e começo do XXI. Secchin reuniu no volume a veia poética do
vate em processo: dos textos jovens (que não demonstram a juventude e que nos
faz crer que o poeta já nasceu velho, no sentido de maduro, não de mofo)
àqueles que, ainda quentes pela proximidade de seu cozimento, se nos oferecem
no banquete. Ative-me aos sonetos, forma fixa medular da tradição poética e que
o autor domina com raro requinte. “Desdizer” nos apresenta duas seções
específicas com sonetos: “Dez sonetos desconcertados”, que parecem configurar
uma preparação em grande estilo para a arrebatadora seleção de “Dez sonetos da
circunstância”. Nos “desconcertados”, Secchin exercita como temas o humor e a
exploração do cotidiano, indo de um soneto ao molho inglês (
não quero um bife, quero o amor de sobremesa)
a outros dois sonetos à boa vizinhança (
Troquei
de celular, mas deu problema/ Amanhã pego onda em Saquarema...Eu não invejo o
morador da cobertura/ o sol da tarde deve ser uma tortura). Em “Soneto da
dissipação”, a presença de fantasmas nos lençóis denuncia a solidão do poeta e
antecipa a constatação dorida da passagem do tempo. O “Soneto profético”, que
tem toda a cara de circunstância, determina o destino trágico do homem numa
deliciosa inversão de sentidos “
seremos
bem felizes
no passado”. É
justamente o tempo a matéria circunstancial dos sonetos seguintes. O passado, a
memória, a passagem inexorável do tempo pelas rugas de um espírito que,
eternamente jovem, vê-se aprisionado na ordem das coisas que o aproximam do fim,
que testemunha o envelhecer, a decrepitude. É o menino que se vê menino, embora
seu olhar maduro reconheça a perda daquela meninice em “O menino se admira” (
O menino se admira no retrato/ e vê-se velho
ao ver-se novo na moldura;/ o tempo, com seu fio mais delgado/ no rosto em
branco já bordou sua nervura). A constatação de que
não tenho tempo para ser eterno (“Repara como a tarde é traiçoeira”)
é reforçada pela lembrança melancólica de um passatempo de criança em “De
chumbo eram somente dez soldados” (
Meninos
e manhãs, densas lembranças/que o tempo contamina até o osso/fazendo da memória
um balde cego/vazando no negrume do meu poço/ Pouco a pouco vão sendo
derrubados/ as manhãs, os meninos e os soldados). O poeta reconhece o tempo
a derrubar todas as coisas em seu trajeto irreversível.
Os dez sonetos da
circunstância passam-me a nítida impressão do trágico, uma vez que lidam a sua
maneira com o caminho do homem sobre a terra, sobre o nascer, o crescer, o
findar-se. O poeta sabe – e nos faz saber – que
em meio a nós escorre sorrateira/ a canção da matéria e da ruína” (“À
noite o giro cego”). E se vibra em nós o anúncio da ruína, vibra mais ainda a
lembrança, a presença incômoda de um passado que contamina coisas, cheiros,
roupas, gentes, a própria casa
: O
silêncio transborda pelo forro/E eu já nem sei o que fazer de tanto/passado
vindo em busca de socorro (“A casa não se acaba”). E quem pede socorro
exatamente? Que voz será essa que, ao poeta, envia seu grito de ajuda? Talvez o
menino que escondeu-se numa dobra do tempo e ficou lá, sozinho, desamparado,
esperando que o adulto em que se tornou o venha buscar pela mão. Só a poesia e
a psicanálise para empreenderem com sucesso essa viagem de resgate. O poeta se
vê no tempo e se questiona “
Estou ali,
quem sabe eu seja apenas/ a foto de um garoto que morreu” e sem receio empreende
o mergulho em direção à constatação de que aquela figura no retrato,
transfigurada, o faz perceber “
Eu o chamo
de meu filho – e ele é meu pai” (Estou ali...)
, epifania muito similar, embora evidentemente muito pessoal, à que
Vinicius de Moraes nos faz experimentar nos versos da canção “O filho que eu
quero ter”. O trajeto desse menino no retrato, no espelho, na verdade desemboca
no poeta em seus cinquenta anos
(E para
coroar todos os danos/bem-vindos sejam os meus cinquenta anos) em “Poema
para 2002”. Sigo minha viagem pelos versos de Antonio Carlos Secchin, perdido e
desejoso de conhecer cada porta aberta em seus poemas – e são inúmeras, como
nos concedem todos os bons poemas. Devagar, lentamente, como convém a um prato
que se come frio, mas que depois de comido, incendeia a alma, sigo me
alimentando dos poemas de “Desdizer”.
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