Acredito,
como Ginsberg e Ferlinguetti, que a poesia reside na respiração, nas pausas, na
pulsação do corpo; que a poesia é, também, um fenômeno corporal. O poema, essa
forma concreta de mistérios, esse jogo de significantes, essa espécie de Lego da linguagem, é fruto desse movimento de corpo que, entre a
intenção e o gesto, surge no trabalho árduo do poeta. O estranho no poema se dá,
por vezes – e são muitas, naquele instante em que um poema te penetra, suspende
a tua respiração, e por puro encanto - que não se deixa reduzir a uma
explicação ou análise, te prostra sem fôlego, tentando entender como aqueles
signos impressos conseguiram fazer vibrar, em ti, uma região quase intocada
pelo dia-a-dia. Embora corpórea, sabemos que a poesia nasce no desvão imenso do
espírito, como nos diz o cônego machadiano. Esse é o poder e o mistério dos
versos de “Fundamentos de ventilação e apneia” (Patuá, 2019), de Alberto Bresciani,
um dos grandes poetas contemporâneos, radicado no Planalto Central.
Em “Cardume”, uma voz nos declara que É preciso
calar, / porque em silêncio respiramos melhor. Dois versos que antecipam a
luta empreendida pelo poeta, sua empreitada de dar nomes ao que escapa à nomeada. Isso é matéria de poesia, como também o é voar fora da asa e manchar seu terno com a marca das ruas. É no silêncio, ele percebe, que reside o segredo da reflexão sobre o mundo e,
particularmente, da linguagem poética. No poema, o silêncio presta-se a abafar o
terror da trincheira, como se não fosse essa a condição básica para a “Eclosão”,
agindo assim, o poeta, como o vate
lusitano: afirmando ser o que realmente é, Perdíamos o ar, para ganhar mais,
logo depois/.../a eclosão, o resto das nossas vidas.
Há nos poemas de Alberto Bresciani, um olhar atento
às coisas do mundo. Olhar delicado, meticuloso, às vezes de uma doçura tremenda, denunciando um poeta que, a parte de toda a candura, se revela crítico da frieza
das relações humanas. O que, à primeira vista, parece óbvio: preocupar-se com o
afastamento do outro, com a insensibilidade humana, torna-se matéria fina nas mãos
do poeta para excelente poesia. Fingindo-se isento, declara-se militante. Em
tempos de redes sociais, do culto às aparências, da celebração do imediatismo, da
frigidez ética e moral, o poeta, em “Desapego”, declara-se atento sim: Claro,
não seremos cegos, lamentaremos / um pouco, bem mais talvez do que insetos. Não confundir com cinismo o que, na verdade, é puro pessimismo gracilianista, mesclado a ironia machadiana, autores que desconfio e infiro sejam referência em prosa do poeta.
Fundamentos
de ventilação e apneia mascara,
sob a falsa forma de um manual para pneumologistas, a discussão filosófica de
nossa animalidade. A fronteira entre o humano e o bestial, tema clássico da
literatura, adquire contornos de grande sensibilidade nos versos de Alberto
Bresciani. Utilizando-se de um processo sutil de analogia, o poeta consegue imiscuir-se
no reino animal para nele nos meter, com fundamento natural, como fora um juiz que, ao analisar os autos de nossa humanidade, concluisse pela irreversíbilidade de nossa porção-bicho. Unidos no
pressuposto básico da sobrevivência – sem ar, não há vida – homens e animais
partilham o planeta. Em vantagem óbvia com relação a estes, aqueles, nos
versos do poeta, empreendem o trabalho de destruição do habitat comum.
Nos poemas, os animais são analogias vivas de nossa
própria existência. Essa espécie de zoologia poética, de sublime catálogo
bestial que inclui peixe, girafa, cardume, golfinho, bisão, hienas, ouriços,
anêmonas, aves, bicos, penas, killifishes, etc. nos remete ao que em nós pulsa
de animália, sim, e nesse processo de construção poética magistral, focaliza
obviamente a grande diferença entre nós, demarcando territórios.
Assim, somos o peixe que se debate sem ar; o peixe
voador que engole o ar, arranca ar...Sobe, sai da água, tem asas; constatamos
pela veia poética de Alberto que somos, sim, espécie de bisões, quando Olhamos
em frente / e nos perguntamos / os olhos bovinos / se este é mesmo / o nosso lugar; quem há de negar
que, de uma certa maneira, não somos tipos especiais de ouriços que ferimos e
nos ferimos por conta dessa similaridade? Que nossa língua sofra as consequências
de nossos espinhos? Ou então que somos aquele bicho-preguiça, lerdo, absorto em
sua imobilidade, alheio ao ferrão que nos espreita? E não sabe, não vai
saber/ do sobrevoo da harpia.
Crudelíssima imagem que resgata nossa natureza
famélica sobre a terra, o poeta nos vê hienas, reduzindo o grande segredo de
nossa sobrevivência: A fome é o que mantém / as hienas acordadas. Esse
animal que se alimenta de restos putrefatos, comensal do Hades, não seria
também um pouco humano, na medida em que nos alimentamos sim das tragédias
alheias expostas nos jornais? No semáforo? Nas ruas sujas de São Paulo, onde
testemunhamos anestesiados o desfile de homens e mulheres arrastando-se com seus
cobertores e a fome de opiáceos? Esses mesmos bichos, como no poema de Manoel
Bandeira, que remexem o lixo são aqueles que seguem sua sina inexorável, como a
manada que encara a travessia, mesmo ciente do silente crocodilo à espreita e atiram-se
à correnteza / Precisam saber / o outro lado. Sim, é da natureza humana
essa necessidade de saber o outro lado, de provar todas as frutas, todos os sabores
e prazeres, mesmo que o bote de um crocodilo eterno seja a surpresa
indesejável.
As imagens construídas por Alberto Bresciani, em sua
bela singeleza, tornam-se cruéis com a visão implacável de nossa natureza. As
grossas teias que nos enovelam pela vida, nos levam por caminhos que, bifurcados,
no mais das vezes nos tornam um outro, aquele que não somos e que gostaríamos
de ser. Como um lobo-guará que, perdido em diversa topografia, vê-se forçado a
perder sua natureza e assumir uma outra pele. Exatamente como muitos de nós –
quem sabe a maioria de nós? – que vivemos num canil, quando poderíamos correr
pelo cerrado? O
lobo-guará / perdeu o caminho / Por descuido / entrou no canil / Finge virar
latas / late como pastor. A tragédia
de nossas vidas tão banais num curto e belo poema.
A sucessão de poemas que tocam o coração do homem a
partir da fera é uma constante neste belo “Fundamentos de ventilação e apneia”.
Uma pergunta que repousa entre as linhas do poema: quem está em extinção? O pássaro
mudo, encolhido, tremendo diante da serpente? O homem, mudo, encolhido, diante
do outro homem? Que ave desiste da rota migratória se não aquela bípede – nuvem
de calças maiacovsquiana? É necessário conhecer-se, saber seus limites,
humildemente reconhecer sua natureza humana, onde o super-homem é mito, fogo de
palha, matéria de filosofia. Somos carne, respiração e a falta dela. Somos,
cada vez mais, espécie de killifishes chafurdando desesperados na lama de
nossas existências sem perceber que nunca terão a chance de beber outra
chuva.
Mas o que mais importa é reconhecer que somos porque outros há e é da nossa natureza o afeto, o aproximar-se, o proteger-se. Somos o animal capaz de compor poemas e pelos versos enxergar-se: Quando você saiu, / as sombras / tinham penas negras / e ficaram pela casa, / pela garganta / as suas penas // Ontem entendi / e acendi a luz.
Mas o que mais importa é reconhecer que somos porque outros há e é da nossa natureza o afeto, o aproximar-se, o proteger-se. Somos o animal capaz de compor poemas e pelos versos enxergar-se: Quando você saiu, / as sombras / tinham penas negras / e ficaram pela casa, / pela garganta / as suas penas // Ontem entendi / e acendi a luz.
Ouçamos o poeta: acendamos a luz diante da grande poesia.
São belissimas suas poesias...adoro..que bênção te-lo como amigo!! Gratidão...
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