No seu sensível “Observatório do caos”,
Ronaldo Cagiano empreende o grande mergulho temido por qualquer ser humano: na
escuridão luminosa do empório de lembranças. O livro de poemas publicado pela
Editora Patuá (2017) carrega a densidade de águas escuras, a dramaticidade
destes tempos selvagens, a frieza de nossas vidas na urbe, mas, principalmente,
a constatação dolorosa da passagem do tempo e da finitude das coisas. O poeta,
espionado pelo passado, faz o inventário de um tempo que se perdeu
inexoravelmente “no porão da infância”. A matéria de sua poesia é basicamente a
memória e o poeta, uma espécie de Pedro Nava dos versos, enfrenta a tarefa de
remexer nesse baú de ossos e fantasmas. Seus temas tocam aquelas lembranças que
deixaram cicatrizes profundas, calos enormes na epiderme do espirito,
experiências irrepetíveis e que formaram o homem que agora, poeta, as transforma
em versos que carregam o cheiro, o gosto, a lembrança tênue de um Proust
incorporado além da prosa. Cagiano mastiga a criança que, ainda viva em si (“O
menino que fui / é hoje meu contemporâneo”), testemunha seu próprio funeral na
correnteza do tempo, metáfora tremenda do rio de sua infância, o velho Pomba -
seu Capibaribe cabralino, seu Tejo Pessoano - e suas enchentes e surpresas.
Trilhando o território drummondiano da infância, o poeta de Cataguases lamenta
a dor de não pertencer, como se o não-pertencimento atribuído a outro, não
fosse justamente uma grande máscara, o seu modo de estar no mundo, a sua
tentativa sempre vã de “fazer a arqueologia do inútil regresso”. O observador
do caos, o próprio poeta, incorpora os diversos universos líricos a partir das
citações em epígrafe de seu arsenal de leituras. Este recurso intertextual,
explode o universo semântico de seus versos, num diálogo que se completa,
iluminando-se em meio à escuridão do dia que atravessa. A longa jornada do
poeta, do homem que lamenta a pequenez de tudo diante da passagem do tempo. O
verão que se vai, a noite que se aproxima, a morte que se faz presente na
partida de um amigo, de um amor, o olvido, tudo são motivos para seus versos
carregados de densidade dramática. O sacrifício da ave na mão inocente das
crianças, a navalha sempre afiada de um pai, a mãe costurando o tempo, alinhavando
o tecido da memória “na escuridão do ontem irremovível”, a dolorosa consciência
de que já não se “fazem revoluções como antigamente”. Há um evidente desencanto
com o mundo, um pessimismo “graciliánico” profundo, fruto talvez das perdas
acumuladas em sua história, a memória das “existências que se cumpriram”, o
embate com as forças repressoras do real. Não por outra razão, nos declara: ‘E
tudo se fez catástrofe/ Nada certo/ Tudo má sorte”. A visão pessimista do
observador do caos não poderia ser diferente, o mundo não é para amadores,
talvez para quem ama as dores de nele estar, o que não é o caso do poeta. A
poesia é esse bicho arredio que não se deixa dominar pelas armadilhas do mundo.
A poética de Cagiano tem a virulência típica de quem não faz o jogo do sistema,
de quem não se deixa levar pelas adulações típicas desse meio pleno de
vaidades, desse mundinho miúdo de mãozinhas de seda, como diria o grande Raduan
Nassar. A poesia de Ronaldo Cagiano não veio para nos dar sossego e paz de
espírito, sua presença vem cutucar a ferida, expor o pus que o dia a dia anda a
produzir. Sua verdade é aquela que nos incomoda, nos faz reler o mundo, retirar
as lentes azul-bebê e perceber a violência explícita que é viver em 2017. Quando
dialoga com o maior de nós, poetas, Manuel Bandeira, ele entrega seu
desconsolo, filtrado em versos, e afirma “o que vejo é um beco sem saída”. Cada
poeta tem seu beco. Não, meu poeta de Cataguases, a saída é justamente a sua
poesia exalando a crítica profunda, expondo o nervo dessa nossa periferia explorada
constantemente, exorcizando o passado que se nos perpassa e nos impulsiona para
o abismo ou para a montanha, para o vulcão ou para a cova. Sua poesia, ao
escancarar as mazelas que nos cercam, a partir daquelas observadas por seu
olhar atento, nos dá alternativas. Seus versos não se dispõem a adular ninguém.
Isso é bom. Isso é ótimo em tempos de tamanha futilidade. Ao mergulhar em suas
próprias dores, o poeta as transfigura e as torna nossas, operando a grandeza
da arte. Mais que isso, assume uma postura independente, arriscando-se à
porrada do sargento amarelo, aquele mesmo que calou o pobre Fabiano em “Vidas
secas”, e que anda por aí, em comerciais de televisão, em jornais, na escola,
no partido, na igreja, no sindicato...vigiando, vigiando. A poesia de Ronaldo
Cagiano não corre o risco de, como dizia Graciliano, “tornar-se-á inofensiva e cor-de-rosa, não provocará o mau
humor de ninguém,
não perturbará a digestão
dos que podem comer.
Amém.” Muito pelo contrário, ela é um a poesia de combate, de confronto. Uma
poesia que finge a dor que deveras sente e que nos convida a reler Bandeira,
Drummond, Orides, Joaquim Cardoso, Augusto dos Anjos, inserindo-se ela também
em nossa tradição lírica, avançando muito além da “Verde” de sua Cataguases,
declarando o seu amor pela poesia, esse gênero tão importante quanto supérfluo,
uma espécie de oximoro do Pessoa: o tudo que é um nada. Mas, tu vaticinas, é
justamente a poesia que “des (a) fias o novelo do meu amor”. A saída, meu
amigo, é a palavra, a sua palavra,”com uma semântica sem esclerose”, o seu “possível evangelho” em meio ao caos.
Brasília, 29 de junho de 2017