quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Soneto em redondilha maior

Se tudo é um simulacro
- parte de um todo postiço –
Existe um mundo castiço
O micro que oculta o macro?

O mundo tem cheiro e viço
Tem brilho, mesmo no escuro
Quanto mais perco, procuro
Aquilo que dão sumiço.

Saiba, de agora em diante,
Meu amigo ignorante:
- Não se deve ignorar

Que é mais que um bonsai gigante
A árvore mais distante

Que o olho possa alcançar

quinta-feira, 29 de junho de 2017

O evangelho do caos - a poesia de Ronaldo Cagiano



No seu sensível “Observatório do caos”, Ronaldo Cagiano empreende o grande mergulho temido por qualquer ser humano: na escuridão luminosa do empório de lembranças. O livro de poemas publicado pela Editora Patuá (2017) carrega a densidade de águas escuras, a dramaticidade destes tempos selvagens, a frieza de nossas vidas na urbe, mas, principalmente, a constatação dolorosa da passagem do tempo e da finitude das coisas. O poeta, espionado pelo passado, faz o inventário de um tempo que se perdeu inexoravelmente “no porão da infância”. A matéria de sua poesia é basicamente a memória e o poeta, uma espécie de Pedro Nava dos versos, enfrenta a tarefa de remexer nesse baú de ossos e fantasmas. Seus temas tocam aquelas lembranças que deixaram cicatrizes profundas, calos enormes na epiderme do espirito, experiências irrepetíveis e que formaram o homem que agora, poeta, as transforma em versos que carregam o cheiro, o gosto, a lembrança tênue de um Proust incorporado além da prosa. Cagiano mastiga a criança que, ainda viva em si (“O menino que fui / é hoje meu contemporâneo”), testemunha seu próprio funeral na correnteza do tempo, metáfora tremenda do rio de sua infância, o velho Pomba - seu Capibaribe cabralino, seu Tejo Pessoano - e suas enchentes e surpresas. Trilhando o território drummondiano da infância, o poeta de Cataguases lamenta a dor de não pertencer, como se o não-pertencimento atribuído a outro, não fosse justamente uma grande máscara, o seu modo de estar no mundo, a sua tentativa sempre vã de “fazer a arqueologia do inútil regresso”. O observador do caos, o próprio poeta, incorpora os diversos universos líricos a partir das citações em epígrafe de seu arsenal de leituras. Este recurso intertextual, explode o universo semântico de seus versos, num diálogo que se completa, iluminando-se em meio à escuridão do dia que atravessa. A longa jornada do poeta, do homem que lamenta a pequenez de tudo diante da passagem do tempo. O verão que se vai, a noite que se aproxima, a morte que se faz presente na partida de um amigo, de um amor, o olvido, tudo são motivos para seus versos carregados de densidade dramática. O sacrifício da ave na mão inocente das crianças, a navalha sempre afiada de um pai, a mãe costurando o tempo, alinhavando o tecido da memória “na escuridão do ontem irremovível”, a dolorosa consciência de que já não se “fazem revoluções como antigamente”. Há um evidente desencanto com o mundo, um pessimismo “graciliánico” profundo, fruto talvez das perdas acumuladas em sua história, a memória das “existências que se cumpriram”, o embate com as forças repressoras do real. Não por outra razão, nos declara: ‘E tudo se fez catástrofe/ Nada certo/ Tudo má sorte”. A visão pessimista do observador do caos não poderia ser diferente, o mundo não é para amadores, talvez para quem ama as dores de nele estar, o que não é o caso do poeta. A poesia é esse bicho arredio que não se deixa dominar pelas armadilhas do mundo. A poética de Cagiano tem a virulência típica de quem não faz o jogo do sistema, de quem não se deixa levar pelas adulações típicas desse meio pleno de vaidades, desse mundinho miúdo de mãozinhas de seda, como diria o grande Raduan Nassar. A poesia de Ronaldo Cagiano não veio para nos dar sossego e paz de espírito, sua presença vem cutucar a ferida, expor o pus que o dia a dia anda a produzir. Sua verdade é aquela que nos incomoda, nos faz reler o mundo, retirar as lentes azul-bebê e perceber a violência explícita que é viver em 2017. Quando dialoga com o maior de nós, poetas, Manuel Bandeira, ele entrega seu desconsolo, filtrado em versos, e afirma “o que vejo é um beco sem saída”. Cada poeta tem seu beco. Não, meu poeta de Cataguases, a saída é justamente a sua poesia exalando a crítica profunda, expondo o nervo dessa nossa periferia explorada constantemente, exorcizando o passado que se nos perpassa e nos impulsiona para o abismo ou para a montanha, para o vulcão ou para a cova. Sua poesia, ao escancarar as mazelas que nos cercam, a partir daquelas observadas por seu olhar atento, nos dá alternativas. Seus versos não se dispõem a adular ninguém. Isso é bom. Isso é ótimo em tempos de tamanha futilidade. Ao mergulhar em suas próprias dores, o poeta as transfigura e as torna nossas, operando a grandeza da arte. Mais que isso, assume uma postura independente, arriscando-se à porrada do sargento amarelo, aquele mesmo que calou o pobre Fabiano em “Vidas secas”, e que anda por aí, em comerciais de televisão, em jornais, na escola, no partido, na igreja, no sindicato...vigiando, vigiando. A poesia de Ronaldo Cagiano não corre o risco de, como dizia Graciliano, “tornar-se-á inofensiva e cor-de-rosa, não provocará o mau humor de ninguém, não perturbará a digestão dos que podem comer. Amém.” Muito pelo contrário, ela é um a poesia de combate, de confronto. Uma poesia que finge a dor que deveras sente e que nos convida a reler Bandeira, Drummond, Orides, Joaquim Cardoso, Augusto dos Anjos, inserindo-se ela também em nossa tradição lírica, avançando muito além da “Verde” de sua Cataguases, declarando o seu amor pela poesia, esse gênero tão importante quanto supérfluo, uma espécie de oximoro do Pessoa: o tudo que é um nada. Mas, tu vaticinas, é justamente a poesia que “des (a) fias o novelo do meu amor”. A saída, meu amigo, é a palavra, a sua palavra,”com uma semântica sem esclerose”, o  seu “possível evangelho” em meio ao caos.


Brasília, 29 de junho de 2017

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Janela da infância


Meu pai saía cedo
com o cheiro bom de café
e o sol nascendo sem pressa
Da janela, o mundo me chegava aos pedaços
primeiro, o azul e branco do céu
depois o verde das mangueiras, pontilhado de amarelos
finalmente, a terra vermelha, molhada
os vasos de flores, as rosas e margaridas
as galinhas correndo no quintal
Minha mãe, cantando, coava o dia
e o cheiro da manhã deitava em minha cama.




Foto: João Mattos

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Sinal dos tempos (uma canção)

Enquanto a gente se enganava com sinais e roupa usada, havia um jeito, em nós, de pura fé
Na rua suja de São Paulo, um guerrilheiro sobre o asfalto sangrava em pura fé.
No nosso lado escuro, sem montanhas, você vê que é difícil realmente amanhecer
Portando os sonhos de anteontem, trajando o riso sobre a fome,
Pedindo o pé do louro pra comer

E o pássaro cantando sob a noite deste sol
Diz que jaz na sala o teu retrato
E o som do rock and roll
Tudo que nos resta, velhos sonhos, nada mais.

Eu vou morrer assassinado sob o sol do mundo errado ou sempre esteve escrito que é assim
O guarda à porta do meu quarto, a mão da morta no meu saco... um sonho ruim
Quem sabe eu cante no Dakota e diga enfim que a terra é nossa em alto, puro e pobre português
Quem vai negar que não tentamos, só por que nos enganamos,
Roupa usada serve pra aquecer.

E o pássaro cantando sob a noite deste sol
Diz que jaz na sala o teu retrato
E o som do rock and roll
Tudo que nos resta, velhos sonhos, nada mais.

Na noite sem estrelas, sem desejos, só pavor, você teme que eu te abrace e que haja sol
Por que toda certeza vem brotar no seu quintal, putrefata flor sem viço, Flor do mal.
Escuto alguém chorando lá no fim do corredor. Ninguém move um dedo para confortá-lo
Será que é tão difícil assim doar-se por amor ao estranho que te cerca ao caminhar.

E o pássaro cantando sob a noite deste sol
Diz que jaz na sala o teu retrato
E o som do rock and roll
Tudo que nos resta, velhos sonhos, nada mais.

Eu vejo a escuridão chegando lentamente aqui e os fascistas vêm marchando sem temor
Pisando em pobres, gays, mulheres, negros, travestis, putas, índios...
Vêm trazendo o seu terror.
O que mais me machuca é o silêncio do homem bom que se cala ante o mal que aí está
são tempos de descrença, desamparo e desamor, e eu te vejo tão tranquilo a bocejar.