terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Os homens de bem de Copacabana (ou As caras de anjo do fascismo)




















Vejo os cães e seus donos pelas ruas,
babás e bebês em carrinhos circulando,
as folhas caindo suavemente das sibipirunas
e porteiros dos prédios jogando criolina nos muros,
espantando um casal que dormiu sob a marquise.
Senhorinhas e senhorinhos desfilando seus cuidadores
Uma prostituta chegou cansada, agora há pouco
e está lamentando, ao celular, uma unha quebrada
Há filas no Mundial, outras no Hortifruti
Há filas para o coração das virgens inexistentes

O sol aquecendo seus motores no centro do Sistema
inflama-se, chama ardente no azul dos trópicos.
Na areia, o dia caiu em bólida performance

Um turista muito branco começa a avermelhar-se
e Copacabana acorda no frêmito costumeiro de seu viço
Toda puro engano, traição e falsidade
Toda espelho do avesso e do inverso.

Mas o que não vejo e só pressinto
- e por isso, tremo -
é que dentro de toda luminosa paisagem
pulsa a escuridão de um monstro adormecido
em cada apartamento, no calor dos quartos e dos corredores
e ele sairá às ruas, em breve, com senhorinhos e senhorinhas
com babás e com porteiros, com putas e com sem-tetos
invadirá as filas dos mercados e o coração das virgens
pedindo a cabeça dos poetas que o observam e o denunciam
babando sangue e mil certezas.
Depois de saciado, andará pelas ruas
como os cães e os bebês
na inocência de quem chuta folhas secas pelo asfalto
de uma cidade sem poetas.

domingo, 27 de janeiro de 2019

Também sou 300











Metamorfose de Narciso, Salvador Dalí





E então minha alma servirá de abrigo


Sei que um dia, apesar de mim, toparei comigo
com este familiar estranho que me tange as cordas
que me vibra o sino, que percute o couro
e que segue em silêncio ensurdecedor
no oco do oco do oco de mim
encalacrado, soterrado, mas que
nas arestas do dia que é noite
garimpa pepitas doídas em jazidas insuspeitadas
e que, revertendo o tempo, segue pelo avesso
tutanos à mostra em cada verso
a alma oculta, latente, no manifesto
tendões retesados, olhar crispado
espanto e espera.
Este que crava as unhas na escamosa serpente
que desliza, buscando a luz, por minha cervical
é meu melhor amigo, meu pior inimigo
quem me impede de topar comigo
e quem me impele a topar comigo.

sábado, 26 de janeiro de 2019

Umbigotrip


















Repare bem
na indignação descarada
explícita e cheia de razões
mas tão inofensiva quanto infensa
- todos berram seu desprezo
no conforto screen de seus lares -
Brumadinho, Mariana, Marielle
(Débord dançou no espetáculo digital)
e nos fomos, rebanho puto,
em direção à desgraça.
Nosso modo de fazer revolução
zapeando, instagramando, facebuqueando, twitando
na bolha zizequiana do real
nos garante um lugar virtual de fala: fálicos e falidos
fadados eternamente ao curtir e descurtir
polegares romanos apontados para cima.
Nós, fantasmas da grande rede,
carpideiras de um tempo que não tem fim
alimentamos uma revolta nunca concretizada
uma fome, um desejo, uma vontade
nunca saciados...
E tudo continua como está
ou
cada vez pior.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

O claustro


É tarde, meu amor, eu vou pra longe
Me arde a pele inteira e não há febre
Meu coração tornou-se o lar de um monge
É a minha adoração que o protege

Meu corpo é o instrumento que ele tange
E faz vibrar com suas mãos macias
Que encantam deuses, homens e falanges
compondo em mim perfeitas sinfonias.

Estamos pelas ruas de mãos dadas
Mas ninguém vê as nossas mãos coladas
As nossas almas juntas, corpos longe

É como se eu sonhasse acordado
O nosso amor profano é tão sagrado
Eu sou teu claustro, amor, e tu meu monge

quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

Seu nome













Não ouso dizer seu nome
- Não posso, não devo -
não virá enfeitar meus lábios
nem banhar-se em saliva
deslizando por minha língua impura
seu nome, não
e no entanto trago-o no peito
desfraldado em códigos que
só eu conheço
em uivo antigo de demônios
qual sussurros de morcegos
num sufocado grito rouco
no aconchego lânguido do leito

Mas ouso escrever seu nome
- Eu quero, desejo -
na silente criptografia dos anjos
inscrita na pele, na palma da mão
(como estigma)
a sagrada cartografia
onde, encontrando-te, me perco
Seu nome, sim
e por isso trago-o no peito
tatuado em meu mamilo
como animal que encilho
com as cilhas dos meus pelos
e saio cavalgando
no mais manso desespero.

Paraíso encontrado








Lençóis maranhenses




Ouvi dizer que buscas o paraíso
Não me vês aqui?
Eu
teu Eden, maçã e serpente 
primeiro e último pecado
Finca os pés, crava os dentes.

Se queres o paraíso, repara bem
nas mãos que te uniram
A mim
teu pasto, prado, porta escancarada
Entra sem aviso, dúvida ou receio
Penetra fundo, de corpo inteiro.

É a mim que procuras, desde sempre,
e nem percebes
que sempre estive à tua disposição 
uma oferenda, despojo
Saqueia-me.

Vem, come o meu capim
Bebe a minha água
Traga o meu cigarro
Dorme em minha cama
Sonha meu sonho, vem
Saiba, meu amor
tudo sempre, em mim, foi teu
- muito antes do nada -