sexta-feira, 20 de junho de 2014

Mensagem na garrafa











para Théo e Vincent, uma ilha

I

O mar aqui não é o mar
o mar são as pessoas
que me cercam
que conheço, desconheço
finjo não conhecer
que não lembro mais.
O mar são elas
e minha mensagem não tem destino CLARO
tem objetivo, tenta ter sentido
e o sabor refinado para raros paladares
A ilha que sou
não se vê como se reflete
Que dor essa de náufrago em mim !
Onde foi parar minha caravela
seus restos, vejo-os aqui, e como dói recompô-los
um cão numa aquarela Turner de manhã
um cão-eu, ilha-eu, náufrago-eu, tudo e nada
EU
eu-pessoa, eu-não-pessoa, eu-coisa
eu-coletivo, eu-todo, eu-caco
eu-só, eu-resto, eu-sobra
eu
eu-labirinto, eu-míope, eu-carne
eu-vasto, eu-torpe, eu-Eu.
  
II
As solidões, fiéis companheiras
- éguas lanhadas e sem dentes
  pisando meus desejos -
elas, a própria carta triste de Van Gogh
para Théo e para Deus.
Solidões - plural - várias, distintas
conheço-as pelo som dos cascos na asa sul
em meu pasto a procriar.
Pelas tesourinhas, pelo monumental eixo
daquilo que não tem eixo: minha vida.
Como é terrível estar acompanhado não estando.
Minha garrafa ainda vazia
aguarda a mensagem não escrita
mas tão claramente estampada nos meus olhos
olhos bucaneiros, olhos barba-roxa
olhos marginais de um mar revolto
olhar  pirata de um lago que paira no ar
O mar são eles e elas
a ilha que eu sou afunda lentamente.
a imagem da tormenta configura-se,
concretiza-se, cristaliza-se
eu-tufão, eu-tempestade, eu-tsunami.
Meu Deus, e o amor ?
essa substância estranha que permeia minha carne.
Será ele, o amor, minha mensagem
ou o medo entranhado, ele sim, majestoso e imponente,
significa o que de real existe em minhas praias privativas ?
Não sei de onde sou, onde estou
meu eu-arquipélago.
Não aprendi essa difícil geografia
não entendo seus mapas
não me adianta bússola
Estou perdido
e o mar de gente ameaça a plantação
tão duramente cultivada
nessa fértil ilha-eu.




segunda-feira, 16 de junho de 2014

Um segundo


















Ninguem te vê chorar
Ninguém te vê
Ninguém
Ninguém nos vê em desespero
Ninguém nos sabe em pele ou pêlo
Ninguém, ninguém nos vê
Nem nosso segredo
Ninguém vê

Não tenho medo ou dó de mim
Mas quero tanto me ver inteiro
Resgatar um menino verdadeiro
Que anos de história sepultou
Está lá esse menino
Sozinho, pelo canto de mim
No mais escuro buraco de mim
E só eu sei dos seus soluços

Ninguém me vê tão só
Tão triste
Profundamente triste e só
Tudo pode estar por um segundo
Posso estar por um segundo
Pode estar por um segundo
Um segundo é o tempo para mudar o mundo
Para morrer no mundo
Para morrer o mundo
Um segundo
Não mais que um segundo.

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Sagrado Impromptu













Creia, sem desespero, e desapegue-se...
Na escuridão há luzes, mesmo que não veja
Há calor no mais gélido dos caminhos
Mesmo que não lhe aqueça
Saiba, nem tudo que aparece sob o céu
se pode apreender com o mero olhar
o olfato nunca alcança a natureza do perfume
e suas mãos nunca saberão do sangue que corre sob a pele
ouvido algum escuta o gemido da estrela.
Há mistérios na manhã mais luminosa
E é ali que as verdades se multiplicam.
O verbo não exprime o cheiro do gosto da cor que arde no trovão
No mais, meu amigo, a língua de deus no horizonte
Sob a linha d’agua, lambendo as nossas certezas.

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Pajelança












Sou luz na aquarela
o brilho que se releva
revela-se na palidez de um tom pastel
Sou só, num mar de plena e densa solidão
meu navegar é lento
como o desfilar do vento
quisera sê-lo pleno
e vaguear o mundo
e penetrar o incenso
de outros cheiros e narizes
e dançar na relva sem receio
mergulhar no abismo sem ter medo
arriscar amar sem meios termos
Ah, como dói querer
e seguir sendo um poço de desejos.

Se pudesse, ah, se eu pudesse
certamente tornaria ao gran canal
como num filme antigo
e sentiria na pele o calor de outras línguas
mas sou apenas a luz de uma aquarela
o esquecido brilho de uma cor morta
e sigo só na doce experiência de estar vivo
saboreando quase todas as frutas
fumando quase todos os fumos
comendo quase todas as delícias
sorvendo quase todas as bebidas
quase todos os caminhos
quase todos os poemas
quase, sempre um quase
o quase de um quase
a me dizer que viver é mesmo um enorme quase
pois todo todo é um tédio absoluto
e assim sigo quase-vivo
quase-vivendo
quase-morto
um quase.


30 jun 2010


quarta-feira, 11 de junho de 2014

Messias

Nesses tempos escuros
sem pontes, mil muros
além do olhar soturno
que mais nos resta esperar?

Talvez um feto mudo
de um ventre qualquer, miúdo,
traga e apresente outro mundo,
o que habita o nosso sonhar.



terça-feira, 10 de junho de 2014

As Greias de Campina Grande

















Vamos devorar as ceguinhas de Campina Grande?
Beber sua bile, comer seu fígado
com nossos dentinhos brancos, sem cárie?
Vamos?
Mastigar as retinas das ceguinhas de Campina Grande?
Morder seu baço, lamber seu buço
e dar um naco pros nossos filhos com seus aparelhos coloridos e dentes perfeitos?
Vamos?
Digerir a voz desafinada das ceguinhas de Campina Grande
num palco em Salvador, São Paulo, Rio
sentados, de buchos cheios, melhores livros, roupas, vinhos e comidas no rabo?
Atirar no mar
Dar uma tapa em Maria, Poroca e Indaiá 
Vamos dar uma esmola pras ceguinhas de Campina Grande?
Jogar moedinhas pros meninos que tapam buracos nas estradas no interior da Bahia?
pros zumbis do crack na rodoviária de Brasília?
E nós no Land Rover, usado e pago a prestações...
Vamos?
Vamos fotografar as ceguinhas de Campina Grande para um pôster gigante?
emoldurá-lo e pendura-lo na sala de casa
A miséria fica linda na parede, vira arte nos museus
um Portinari e seus retirantes
as três ceguinhas de Campina Grande
nossa alma.
Vamos?
E depois dormiremos em paz, consciência leve
a caminho do céu dos burgueses filhos da puta que somos nós
com nossas máscaras, com nossas neuras, nossos desmantelos
Quero adorar as ceguinhas de Campina Grande
roubar seu olho e seu dente, afiar sua tesoura
comprar seu filme, seu disco, seu livro, seu copo descartável
como a descartabilidade de todas as ceguinhas devoradas
Eu escuto, eu vejo, eu falo

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Sexo e linguagem



Quero apresentar meu pequeno poema, mas antes devo dizer que ando encafifado com um texto profano que ousei começar. Há meses, entre pausas longas provocadas pelo desânimo, pela descrença e pela falta de inspiração, e curtíssimos momentos de febril labuta e criatividade, venho lidando com esse bendito híbrido (não é conto, nem crônica, nunca foi ou será romance, não sei do que se trata). Posso confessar que o mote me veio de Machado. Não, mentira minha. Não foi propriamente de Machado que me surgiu a idéia de escrever a ladainha em prosa, mas de um escritor que habitava os favoritos do velho Bruxo: o francês Xavier de Maistre e seu divertido “Viagem ao redor do meu quarto” (1794). Comecemos pela constatação de que alguns leitores me acusam de caprichar na dose de veneno pornográfico em alguns dos meus escritos. Injusta acusação, grito cá com meus pentelhos. Grito em vão, pois até os amigos mais chegados adquiriram o hábito de me presentearem com lembranças porno-eróticas que adquirem em suas viagens. São estátuas nuas, copos fálicos, cinzeiros com motivos pornográficos, enfim, uma parafernália de pequenos objetos profanos que daria material suficiente para uma década de análise a fio.  Devo confessar que gosto muito desses mimos. Olho-me no espelho e aquele menino que vejo não é o velho sujo e sacana que muitos enxergam nos textos e na vida real. Paciência. Certa vez, lá se vão bons 26 anos, num concurso de poesias, ouvi o seguinte comentário de um leitor acerca de singelos versos que inseri no certame promovido pelo Diretório Central de Estudantes “Parece coisa de Jorge Amado”. Em princípio, cheio de um preconceito alimentado pela burrice e pela ingenuidade, tratei que me xingava, pois como poderia me comparar ao velho Jorge Amado, um não escritor? Depois, curioso, ouvi sua explicação de que meus versos tinham muito palavrão, eram indecentes, como a prosa do baiano. Ora, ora, ora. Começou ali a minha fama de um escritor puto que almeja ser um puto escritor. Hoje, respeito o velho Jorge e sua capacidade ímpar de escrever uma boa história, coisa que eu, e muitos escritores deste país, principalmente da minha geração, carecemos absurdamente, mas continua pregada em mim a fama de um boca suja. Há uns dias, sofrendo com esse meu novo texto inspirado em Xavier de Maistre, comecei um longo discurso sobre o sexo, território de Afrodite e das bacantes em transe, pasto das vacas sagradas de nossa natureza. Batizei meu híbrido com o título paródico “Viagem ao redor do meu saco”, e mergulhei de corpo e alma em sua escritura. Que me perdoem os espíritos puros, que ainda há, e como diria meu mestre Manuel Bandeira, “as virgens cem por cento e as amadas que envelheceram sem maldade”, mas não faço concessões ao bom gosto quando escrevo e vem daí minha fama de boca gregoriana (do poeta barroco baiano). Palavrões são doces quando bem colocados na boca de um personagem. Nada melhor que um porra, que um cu ou uma buceta, com u, no momento propício da narrativa. Lembro-me de Rubem Fonseca e seus avós que nunca foderam. Ainda não terminei esta viagem em prosa, mas tenho meio caminho andado em volta de meu saco, e foi justamente no meio dessa caminhada que deparei-me com a lembrança feliz da “Arte de amar”, de Bandeira:

Arte de Amar

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus — ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não
(in Belo, Belo)

Os versos desse belo poema caíram como espada na bainha lúbrica de meu texto, em epígrafe, pois toda a discussão do meu híbrido reside no embate entre tendões, nervos, fluidos, líquidos e sussurros e a matéria inefável do mistério: em onde reside o desejo? Devo logo deixar claríssimo que não tenho a mínima pretensão de descobrir de onde e para onde vai a libido, deixando-a a cargo do “desvão imenso do espírito”. Note como neste ponto começo a mastigar palavras que transcendem a concretude do real: falo de desejo, espírito, libido, no momento exato em que trato de falo, orgasmo, cópula, sêmen. Ao escrever a “Viagem ao redor do meu saco” estou, mesmo sem querer, invadindo a seara metafísica de Deus e das almas, apesar de querer falar de carne e corpos. Como minha matéria aqui é a linguagem e não a ação da cama, é óbvio que meu caminho passeia pela reflexão sobre o sexo, não é, portanto, o sexo; nem simulacro de sexo, apenas indagação, abstração, confissão, ficção em torno de sexo. Não se goza pela palavra, quando se escreve ou se a mastiga. Inspirado em Bandeira, escrevi meu pequeno poema que segue:

As almas,
Na cama, são cegas
Os corpos,
Em braile, se enxergam.


É isso e mais nada, por enquanto.

terça-feira, 3 de junho de 2014

Quatro cantos de amor - Canto IV



Pablo Picasso, 1971





Levanta-te, vento do norte, vem tu, vento do sul. Sopra no meu jardim para que se espalhem os meus perfumes. Entre meu amado no seu jardim, prove-lhe os frutos deliciosos.
Cântico dos cânticos, 4
 


Num dia triste, n’escura via,
Um deus raivoso armou-se insano
num golpe apenas selou meu riso
Quebrou-se o encanto, banhou-se em pranto
O meu amado, de mim, partido
Perdeu-se adentro num rasgo fundo
um corte escuro, talho preciso
abriu-se em mim tal buraco fundo
Tão denso e triste quanto o mais profundo
Dos umbrais, infernos e abismos.
Vi-me sem ti, de repente, mudo
Foi-se o desejo, foi-se o sossego
A mansidão deu lugar ao grito
Silencioso de um coração aflito.
Onde o teu rosto? Onde o amado?
Onde o teu corpo, meu lar, meu mundo?
Sumiu no mundo, deixou-me um corte
Que ninguém vê, que ninguém pressente
Ferida exposta na pele d’alma
A tatuagem do meu desencanto
A marca ardente dos meus desenganos

Duro ser meio, ser incompleto
Hoje o que sou sem você por perto?
Onde a metade que me sorria?
Onde teu toque, teu membro, lábios?
Onde eu em ti e onde, em mim, habitas?
Hoje sou parte e por isso nada
Do que contigo eu fui um dia.
Ah, meu amado, hoje tão distante
Lembras, em que o amor ardia, o instante ?
Um só desejo, um só semblante?
Éramos dois corpos, dois amantes
Num só gozo imenso e alucinante.
Lembras, quando um éramos, o momento?
Eu dentro em ti e tu em mim eternamente
Quando eternos eram os segundos?
Hoje sou naco, parte, resto, fragmento
Daquele alegre ser que fui contigo
Antes que um deus insano e ciumento
Houvesse, por prazer, selar meu riso.






Quatro cantos de amor - Canto III








É a liteira de Salomão, escoltada por sessenta guerreiros, sessenta valentes de Israel;.todos hábeis manejadores de espada, e exercitados no combate; cada um deles leva a espada ao lado por causa dos terrores noturnos.
Cântico dos cânticos, 3.




Abraça-me que todo o mal do mundo
há de se afastar de nós. Eu sei, eu sinto
Pode a noite vir pesada e fria
E o dia nos brindar com escuras nuvens
que no teu abraço encontrarei a calmaria
Podem as tardes se pintarem de angústia
E nas manhãs, flores gris e melancólicas
Emoldurarem uma triste paisagem
Que no teu abraço encontrarei a alegria.
Por isso, chega perto de mim sem medo
Exatamente assim como me entrego
E crê no que te digo neste instante:
Não tema a dor, a febre, a chaga
Tampouco a vinda da velha indesejada
Não tema a noite, o fim, a estrada
Nem o abismo que acompanha a caminhada
Pois sou teu porto calmo e mar tranqüilo
o ninho onde pousas a tua asa
Sou teu abrigo amigo, tua cama
Vem, sobre meu corpo, deita tua alma
Que vou te proteger de toda ameaça
Como um guerreiro brandindo sua espada
Defende seu castelo, sua muralha
E mesmo quando nos colha a morte um dia
E o teu braço seja apenas carne fria
Os versos que te fiz farão de ti
O corpo cálido que morte alguma acaricia
E no combate que esta vida nos reserva
Farei da minha pena de poeta
Maneira de lutar e proteger-te.
E se hoje peço que me abraces, me protejas
Eu sei que o faço, pois teus braços são poemas
Cujos versos entoamos em silêncio
Tua boca em minha boca, rima rica
Preciosa construção de dois guerreiros.



segunda-feira, 2 de junho de 2014

Quatro cantos de amor - Canto II







Minha pomba, oculta nas fendas do rochedo, e nos abrigos das rochas escarpadas, mostra-me o teu rosto, faze-me ouvir a tua voz. Tua voz é tão doce, e delicado teu rosto!
                                                             Cântico dos cânticos, 2






Reconheço o teu cansaço, é meu também
Preenche cada espaço que me resta
Vem, descansa em mim seu corpo inteiro
Os fortes braços meus te enlaçarão
Como envolve o teu a cada movimento
As fibras todas do meu coração
Como cada um dos meus frágeis pulmões
Carece da vazão de teu oxigênio
Pousa, pois, a tua barba em meus mamilos
E deita entre minhas pernas a tua mão
Percorre minhas brechas, gretas, brenhas
Perscruta, como um lavrador, um campo virgem
E como um caçador a mata estuda
E sobre mim, tua mata e campo demarcados
Retesa o teu arco e deita o teu arado
Que eu, flor viril, te darei cheiro, caule e pétala
E tu, meu jardineiro, cuidarás de cada florescência
Alimentando minhas raízes escondidas
Com a seiva rara e rica de teu tronco.
E no fim, fera abatida por tua seta
Serei com prazer também teu alimento
o meu destino nos teus dentes transcendendo.