segunda-feira, 18 de maio de 2020

Noite muda






















Era noite, eu lembro bem.
Pássaros caíam, estrebuchando,
grilos em silêncio absoluto
Era uma noite muda.
Estrelas piscavam em morse
nas poças escuras do chão estrelado e frio
que pisávamos com medo
e nada entendíamos.

Nas paredes, impregnando-as,
as dores da família, seus rancores,
desejos, dissabores, vícios;
cada tijolo encharcado de mágoa,
inveja e vontades sem potência;
o rejunte tingido de lodo e limo
e sonhos não vingados, sonhos-fungo;
rachaduras prenhes de saudades
e insuspeitadas possibilidades.

A casa, às escuras, flutuava no vazio dos olhos
pousados, como andorinhas úmidas,
num horizonte que se afastava lentamente
sob o negrume daquela noite triste
arrastando, em silêncio, os pássaros mortos pelo chão.



terça-feira, 12 de maio de 2020

Passarão os passarinhos


                       

       












Anjos, LAF (nanquim)


Aos poetas mortos    

Sim, os poetas morrem
apodrecem, cheiram mal, decompõem-se
exatamente como os fascistas
e as virgens que envelheceram sem maldade.

Vão-se nas dores de um infarto,
na agonia de pulmões contaminados,
na febre noturna dos desvalidos,
no sangue pútrido sobre o asfalto
na solidão das UTIs
nos porões, nos quartos cor de rosa.

Não se iluda, os poetas, como os fascistas,
perecem e dissolvem-se na terra, feito adubo,
adormecendo com as raízes;
tornam-se cinzas nos fornos
túmulo de todas as fênix;
abrigam larvas e vermes
tornam-se carniças.

Impossível negar, os poetas, como os fascistas
e as virgens que envelheceram sem maldade
findam-se um dia, inevitavelmente,
passam, mesmo sendo passarinhos
a morte os iguala insensivelmente.

Então, o que nos sobra?
Versos, versos e versos
que valem a própria existência;
crueldade, ignorância e desprezo,
que nos impelem à luta implacável
e sem perdão.
A vida inteira que nos cabe e nos abraça,
depois que se vão os poetas,
os fascistas e as virgens que envelheceram sem maldade,
justifica-se pela arte, pela luta e pelo desejo.