quarta-feira, 12 de junho de 2019

Acendam a luz : a poesia de Alberto Bresciani


   
 

















 Acredito, como Ginsberg e Ferlinguetti, que a poesia reside na respiração, nas pausas, na pulsação do corpo; que a poesia é, também, um fenômeno corporal. O poema, essa forma concreta de mistérios, esse jogo de significantes, essa espécie de Lego da linguagem, é fruto desse movimento de corpo que, entre a intenção e o gesto, surge no trabalho árduo do poeta. O estranho no poema se dá, por vezes – e são muitas, naquele instante em que um poema te penetra, suspende a tua respiração, e por puro encanto - que não se deixa reduzir a uma explicação ou análise, te prostra sem fôlego, tentando entender como aqueles signos impressos conseguiram fazer vibrar, em ti, uma região quase intocada pelo dia-a-dia. Embora corpórea, sabemos que a poesia nasce no desvão imenso do espírito, como nos diz o cônego machadiano. Esse é o poder e o mistério dos versos de “Fundamentos de ventilação e apneia” (Patuá, 2019), de Alberto Bresciani, um dos grandes poetas contemporâneos, radicado no Planalto Central.

Em “Cardume”, uma voz nos declara que É preciso calar, / porque em silêncio respiramos melhor. Dois versos que antecipam a luta empreendida pelo poeta, sua empreitada de dar nomes ao que escapa à nomeada. Isso é matéria de poesia, como também o é voar fora da asa e manchar seu terno com a marca das ruas. É no silêncio, ele percebe, que reside o segredo da reflexão sobre o mundo e, particularmente, da linguagem poética. No poema, o silêncio presta-se a abafar o terror da trincheira, como se não fosse essa a condição básica para a “Eclosão”, agindo assim,  o poeta, como o vate lusitano: afirmando ser o que realmente é, Perdíamos o ar, para ganhar mais, logo depois/.../a eclosão, o resto das nossas vidas.

Há nos poemas de Alberto Bresciani, um olhar atento às coisas do mundo. Olhar delicado, meticuloso, às vezes de uma doçura tremenda, denunciando um poeta que, a parte de toda a candura, se revela crítico da frieza das relações humanas. O que, à primeira vista, parece óbvio: preocupar-se com o afastamento do outro, com a insensibilidade humana, torna-se matéria fina nas mãos do poeta para excelente poesia. Fingindo-se isento, declara-se militante. Em tempos de redes sociais, do culto às aparências, da celebração do imediatismo, da frigidez ética e moral, o poeta, em “Desapego”, declara-se atento sim: Claro, não seremos cegos, lamentaremos / um pouco, bem mais talvez do que insetos. Não confundir com cinismo o que, na verdade, é puro pessimismo gracilianista, mesclado a ironia machadiana, autores que desconfio e infiro sejam referência em prosa do poeta. 

            Fundamentos de ventilação e apneia mascara, sob a falsa forma de um manual para pneumologistas, a discussão filosófica de nossa animalidade. A fronteira entre o humano e o bestial, tema clássico da literatura, adquire contornos de grande sensibilidade nos versos de Alberto Bresciani. Utilizando-se de um processo sutil de analogia, o poeta consegue imiscuir-se no reino animal para nele nos meter, com fundamento natural, como fora um juiz que, ao analisar os autos de nossa humanidade, concluisse pela irreversíbilidade de nossa porção-bicho. Unidos no pressuposto básico da sobrevivência – sem ar, não há vida – homens e animais partilham o planeta. Em vantagem óbvia com relação a estes, aqueles, nos versos do poeta, empreendem o trabalho de destruição do habitat comum.

Nos poemas, os animais são analogias vivas de nossa própria existência. Essa espécie de zoologia poética, de sublime catálogo bestial que inclui peixe, girafa, cardume, golfinho, bisão, hienas, ouriços, anêmonas, aves, bicos, penas, killifishes, etc. nos remete ao que em nós pulsa de animália, sim, e nesse processo de construção poética magistral, focaliza obviamente a grande diferença entre nós, demarcando territórios.

Assim, somos o peixe que se debate sem ar; o peixe voador que engole o ar, arranca ar...Sobe, sai da água, tem asas; constatamos pela veia poética de Alberto que somos, sim, espécie de bisões, quando Olhamos em frente / e nos perguntamos / os olhos bovinos / se este é  mesmo / o nosso lugar; quem há de negar que, de uma certa maneira, não somos tipos especiais de ouriços que ferimos e nos ferimos por conta dessa similaridade? Que nossa língua sofra as consequências de nossos espinhos? Ou então que somos aquele bicho-preguiça, lerdo, absorto em sua imobilidade, alheio ao ferrão que nos espreita? E não sabe, não vai saber/ do sobrevoo da harpia.

Crudelíssima imagem que resgata nossa natureza famélica sobre a terra, o poeta nos vê hienas, reduzindo o grande segredo de nossa sobrevivência: A fome é o que mantém / as hienas acordadas. Esse animal que se alimenta de restos putrefatos, comensal do Hades, não seria também um pouco humano, na medida em que nos alimentamos sim das tragédias alheias expostas nos jornais? No semáforo? Nas ruas sujas de São Paulo, onde testemunhamos anestesiados o desfile de homens e mulheres arrastando-se com seus cobertores e a fome de opiáceos? Esses mesmos bichos, como no poema de Manoel Bandeira, que remexem o lixo são aqueles que seguem sua sina inexorável, como a manada que encara a travessia, mesmo ciente do silente crocodilo à espreita e atiram-se à correnteza / Precisam saber / o outro lado. Sim, é da natureza humana essa necessidade de saber o outro lado, de provar todas as frutas, todos os sabores e prazeres, mesmo que o bote de um crocodilo eterno seja a surpresa indesejável.

As imagens construídas por Alberto Bresciani, em sua bela singeleza, tornam-se cruéis com a visão implacável de nossa natureza. As grossas teias que nos enovelam pela vida, nos levam por caminhos que, bifurcados, no mais das vezes nos tornam um outro, aquele que não somos e que gostaríamos de ser. Como um lobo-guará que, perdido em diversa topografia, vê-se forçado a perder sua natureza e assumir uma outra pele. Exatamente como muitos de nós – quem sabe a maioria de nós? – que vivemos num canil, quando poderíamos correr pelo cerrado?  O lobo-guará / perdeu o caminho / Por descuido / entrou no canil / Finge virar latas / late como pastor. A tragédia de nossas vidas tão banais num curto e belo poema.

A sucessão de poemas que tocam o coração do homem a partir da fera é uma constante neste belo “Fundamentos de ventilação e apneia”. Uma pergunta que repousa entre as linhas do poema: quem está em extinção? O pássaro mudo, encolhido, tremendo diante da serpente? O homem, mudo, encolhido, diante do outro homem? Que ave desiste da rota migratória se não aquela bípede – nuvem de calças maiacovsquiana? É necessário conhecer-se, saber seus limites, humildemente reconhecer sua natureza humana, onde o super-homem é mito, fogo de palha, matéria de filosofia. Somos carne, respiração e a falta dela. Somos, cada vez mais, espécie de killifishes chafurdando desesperados na lama de nossas existências sem perceber que nunca terão a chance de beber outra chuva

Mas o que mais importa é reconhecer que somos porque outros há e é da nossa natureza o afeto, o aproximar-se, o proteger-se. Somos o animal capaz de compor poemas e pelos versos enxergar-se: Quando você saiu, / as sombras / tinham penas negras / e ficaram pela casa, / pela garganta / as suas penas // Ontem entendi / e acendi a luz.

Ouçamos o poeta: acendamos a luz diante da grande poesia.