sábado, 31 de maio de 2014

Quatro cantos de amor - Canto I







Enquanto o rei descansa em seu divã, meu nardo exala o seu perfume;meu bem-amado é para mim um saquitel de mirra, que repousa entre os meus seios;
                                                                          
Cântico dos cânticos, 1





Canto I

Olha, amor, a manhã surgindo imensa e mansa
Como manso e imenso o meu coração sem medo
Feito um barco calmo ondulando
em tua respiração vou navegando.
Sente o perfume de nardo em seu peito ?
Há pouco, fúria, fome e gozo
De prazer um mar revolto
Arrastando margens, praias e sereias
Nossos cascos, crinas e galopes
Num pasto proibido e desejado.
Dois cavalos mastigando o vento
O capim desse desejo então sagrado.
Agora, a mansidão do sono afetuoso
Em repouso,  teu arco viril jaz perfumado
De minhas cordas tensas, agora mudas
Ansiando a vibração do toque virtuoso
Vê, amor, a noite, em nós, ainda persiste
na acesa brasa que seu cheiro sopra
Em combustão incendeio a calmaria
E seguimos nós compondo Sinfonias



sexta-feira, 30 de maio de 2014

No país das maravilhas


















São velozes os passos que espetam a terra
Afundam-se superficialmente
Desconexos

Sou eu quem tateia a pele telúrica e fria
Que cobre meus amores mortos
São meus os pés com pontas
Que a marcam, que a ferem
Que a acariciam.

Quem bate à porta a essa hora da noite?
Quem atrás da cortina nesse dia de chuva?
Quem sob a cama nessa madrugada seca?
Talvez um espelho de cristal insista
Atrás da porta... sob a cama e
desvelados pela cortina de seda rósea
o gato, o coelho e Alice
mastiguem minha almazinha medrosa
e cuspam-na na tessitura das cores escuras
Amém!






quarta-feira, 28 de maio de 2014

Adagio Moderato



























Eu menos o mundo
Sou
No mais profundo abandono
dono de mim

Tu, tão longe de meu corpo
Arrastas minha alma e meu sossego
Como pode a ausência do que é amado
Ser tão presente e tão constante?
E na distância estendo o tempo
Milímetros de segundos que salpicam
De solidão esses momentos
Sem teu corpo, sem teu gesto, sem teu riso.
A tua morte é sempre a minha derrocada
A tua tragédia é meu destino
Juntos estamos nessa história.

Eu menos o mundo
Somos
No mais profundo abandono
Donos de nós.







segunda-feira, 26 de maio de 2014

Acalanto ao meu desejo



Já sonhei que voava e que caía
que, nu, corria pela rua em que morava
Já sonhei dormindo que acordado estava
E,  acordado,sorri por que sonhava
O que me dói são as quedas e os vôos
E a nudez em que me encontro
Quando não sei se estou sonhando
Ou se sou sonhado.












sexta-feira, 23 de maio de 2014

Psicoetimologia


Todos a sentem
Só nós a temos 
O resto do mundo sente falta
Em nós, a falta  se faz linguagem
e toda doce ausência está presente
concretamente
doendo e sibilando
em cada letrinha de
S-A-U-D-A-D-E








terça-feira, 20 de maio de 2014

O peixe (1986)

Uma palavrinha inicial: este é um poema escrito em janeiro de 1986, portanto, releve o idealismo exacerbado dos versos, sinal da juventude e ingenuidade do poeta. Publico-o porque, apesar dos desvios todos, é um poema que me diz muita coisa ainda.











Kandinski, The goldfish (1925)


Prefiro pescar a qualquer pescaria

Vamos pichar os muros do país
Love me baby, Love me
pintar as paredes das padarias
dos bares e dos açougues
dos palácios dos governos
vamos beber a seca dos momentos
e ganir nossos orgasmos no asfalto
vamos cavalgar os meios-fios do planeta
berrar nossa besteira sagrada nos bueiros
vamos caminhar eretos nos desfiles
com a roupa mais rasgada e velha e triste
trilhar todos os bares, levantar todos os bêbados
embebedarmo-nos de todos os desejos
vamos transitar por várias línguas
cheirar todos os cheiros e resinas
compor velhos sonetos portugueses
beijar algumas virgens escondidas
vamos estudar os siameses
dizendo a todo instante dos reveses
que a vida nos prepara e nos concede
Vamos correr os pastos do país
Beijar todas as vacas do planeta
E nos alimentar em quentes tetas.

Baby, vamos dar todas as dicas
você e eu e o mundo à nossas vistas
vestidos de verão e de umidade
Não me deixe, vem, temos história
Vamos nos guiar pela retórica
Do vento que nos chega do Oriente?
Não, não vamos nos guiar por coisa alguma
Por cercas, por faróis nem por anúncios
Não vamos abordar ideologia
que é coisa perigosa e que vicia.
Inda resta muito pouco tempo
Vem meu bem, deseje-me a contento
O mundo é belo palco de tragédias
Comédia, o mundo é pleno de paródias
a fome é o tal motor da estratégia
de nossos pelotões de caras sérias
Ah, milenar exército nu, em pêlo e em glória!
Eles não vão prender nossos cabelos
nem fustigar os nossos desacertos
Vamos brilhar nas telas de TVs
em close nossos risos visionários
artistas de uma aldeia que se vê
morrendo e rindo, cheia de esperança,
feito um bando bonito de otários.

Vamos pichar muros e planícies
Que o nosso amor aflora à superfície
E queima e queima e queima com vontade
Vamos meu amor falar de amor
Por toda e passageira eternidade.

13.01.86

sábado, 17 de maio de 2014

O Anjinho











 Para Milton Faria (autor do desenho)


Já não voa, é só suspiro
o olho no céu de nuvens
imagina um menino
guiado pela pipa
que rebola pelo azul.
O velho sabe o vento
que a criança sente
dentro dele há uma criança
e toda criança é um anjo
de asinhas invisíveis
num vôo largo.
O velho não passa de um marmanjo
de  asas cortadas
e é só suspiro
mas o que ninguém vê
é a nuvem que o arrasta
em ventania e algazarra
para a farra do menino.
Toda criança é um anjo
Que brinca no mar do mar-manjo.



sexta-feira, 16 de maio de 2014

A lua

Oh, solidões contempladas
Ainda estarás flutuando
Quando eu for nada
Balão de prata na mais profunda escuridão
E outros olhos estarão fisgados
pela tua eterna pescaria de olhares, uivos  e suspiros
Colados em ti os olhos dos meus netos
Dos netos dos meus bisnetos
Dos tataranetos de meus tataranetos
Como estiveram os meus em tua silhueta
Encantados nas noites claras em que te exibistes
Ah, lua! Espelho de nossos mistérios
Projeção de nossa melancolia


Oh, solidões contempladas
Olhos cro-magnons colaram em ti
Olhos Neandertais colaram em ti
Olhos Tupis de muitos séculos colaram em ti
Aztecas e incas e maias colaram seus olhos em ti
Exatamente como o fazem hoje os meus
Da minha sala, enquanto escrevo este poema.
Antigos olhos nas savanas africanas te admiraram
Padres na medieva Notre Dame olharam para ti
Criminosos, pelas grades, te admiraram
Outros desconhecidos olhos pelo mundo te adoraram
Como os olhos de meu filho que te fotografam.
Insensível tu circulas nosso espanto
Adolf Hitler e Madre Teresa colaram seus olhares em ti
Kennedys e Mao Tse Tung colaram seus olhos em ti
Mozart e Flaubert colaram seus olhos em ti
E em milênios haverá outros olhares ainda encantados
Acompanhando teu trajeto pelo céu
- Mais poluído, menos ingênuo -
Observando teu passeio matemático.
Quando eu for nada tu ainda estarás brilhando
Teu brilho morto e frio e misterioso
e talvez alguns olhos estejam colados nestes versos.





Considerações acerca dos Ipês

Tu, maiacovski no cerrado,
Que me fitas em arrogante vaidade
Não imaginas o lugar em que me jogas
Ó violência amarela nas retinas
Apolínea ereção que me fustiga
Me cegas na seca que me cerca
Tu, vlaidoso vladimir amarelo,
Cíclica presença da aparente morte
Exibindo-te revelas minha pequenez.


Tu, blusa amarela da botânica
Irrompes em virulenta epifania
Pra que eu, metafisicamente de joelhos,
Possa adorá-lo com espanto, na afasia
Doce bala laica que profano
No sagrado deleite do olhar
Tu, perfeição, pecado, engano
Que a gula da visão vem  devorar



Tu mostras o natural destino
Da beleza que carregas e que invejo
No frescor de tuas folhas que admiro
Dança o vento quente seco que renego
Tu, russo poeta feito árvore
Nuvem que calças cobrem e oculta
Mostra a novidade de ser belo
No amarelo farto do estar vivo
Doce laica bala que mastigo
Leigo é o meu contentamento

 Perco-me no meu próprio castigo
 Não ser Ipê, poeta, nem ser vento.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

A pedra










Para João Cabral



A força da pedra
reside no fato inconteste
da coisa que se revela
e, por si própria, permanece
em qualquer tempo e hora
pedra e pedra e pedra e pedra
e assim, pedra, se conhece
Arma ou recurso de obra
que no fundo se estabelece
no ponto de vista das partes
a pedra que se conserva
tem a força do que fere
e o silêncio do que eleva
no chão, banhada em sangue
nas pontes ou sob a terra
é, foi e será pedra
mesmo que o homem dê
à pedra o vigor da fala
e à alma o teor da pedra
a coisa em si permanece
a alma empedrada cala
a pedra falante e inerte. 




sábado, 3 de maio de 2014

Duas cantigas de amor





1.

Amado meu, te sigo triste
Em riste a espada que me fere
Parte do olhar que me confere
a natura espécie que conquiste
a dor mais funda, mais terrível,
que teu desprezo me concede

Amado meu, o que ofereces
É parco, é pobre, é desprezível.



2.

Minha dona diz que não me ama
E por não me amar renega a posse
Deste coração que tanto clama
Por ela, minha luz e minha chama,
que não sendo dona é como fosse

Que venha seu mais puro desdenhar
Na minha dor mais funda se instalar.