terça-feira, 15 de julho de 2014

Dos desertos








Dedicado a um poeta em depressão


Os poetas são animais em extinção
Tombam como sibipirunas e jacarandás
Rarefeitos como ar puro
Vão-se feito ararinhas azuis... minguando.
Os bons versos são mico-leões dourados
Carecem de que se lhes dêem o valor de sua raridade
Somem-se em vez de somarem-se
E nisso vai-se também nossa alma apaixonada.
È preciso preservar os ipês e os poetas
As Baleias e os versos
A ética e o tigre albino de Pequim.
É necessário proteger a mata atlântica
E resgatar os bons sonetos
Pois se morremos com rios poluídos
Tornamo-nos tristes sem a poesia
Bestas ficamos sem arte e sem ar
Sem magia, sem estranhamento, sem ritmo
Sem pulso, sem penas, sem escamas, sem rimas
Sem vôo, sem delírio, sem mergulho, sem bicos
Sem lábios, sem garras, sem fibras, sem vida.
Temos mata, rio e bicho em nossa alma
E se matamo-los fora de nós
Morremo-nos também inteiramente
Sobrando-nos a assustadora possibilidade
De rimarmos o deserto ante nossos olhos
Com o deserto de nosso espírito.


quarta-feira, 9 de julho de 2014

Eu e ele







"Weird cloud formation", Goro Fujita


Quando digo não
meu coração reclama
ele sabe - e eu sei -
que definitivamente
não nos conhecemos

ele é sempre o bom menino
eu, o sacana
sou sempre o estraga-festa
ele, o bacana

meu coração não me engana

ele ateia o fogo
eu que vou em cana
ele quebra os vidros
eu que levo a fama
ele o mais esperto
eu sempre o banana

meu coração me esgana.





terça-feira, 8 de julho de 2014

Evangelho do Lodo









À maneira de Manoel de Barros


Sinto as raízes cantando
no tom do lodo e das pedras
o cheiro doce da luz das rãs

a carne farta da terra
anoitecendo nas gias
lesmando o sonho...desacordar.

Amanhecerei orvalho
entardecerei riacho
anoitecerei no teu suor

madrugarei tempestade
vento ventando vontades
serei semente vibrando ao sol

Almas das águas dos rios
borboletando no cio
do faz-de-conta que não tem fim

e ao me perder, criar limo
brotar canção, virar bicho.
Sei do desgosto de ser capim

O desandar das lagartas
sobre o azul de fastio
tanta saudade chovendo em mim

pelas goteiras da alma
sinto encharcar-me da calma
de quem sabe que trilha seguir.

Saudade é a luz quando escuro
o deslizar nobre e seguro
das cobras d' água no pantanal

bicho sem nem canseira
eis a saudade...certeira
ei-la, tocaia no meu quintal.
  
Se sabe a cruz, sabe a chaga
de quem conduz pela espada
de quem tem justo por não crer

na paz das almas marcadas
no chão das crias aladas
no que se passa antes de chover

Vem ver a noite emprenhada
a cor da estrela abortada
na marca-gosma das lesmas.

esse evangelho do lodo
vibra na parte e no todo
num pergaminho de pedras:

Que a chuva leve o que há de pior
que o vento traga o que há de melhor
que o fogo nos purifique
que a terra enfim frutifique
o amor.



sexta-feira, 4 de julho de 2014

Dos sonâmbulos









Richard Serra, out-of-round X, 1999

já pensou em não pensar ?
iluminar-se e iluminar.

acalma o lago frio e fundo do queixume
e traça novo rumo à travessia
tu sabes do silêncio que envolve a arma branca
e da peçonha-sangue do desprezo de um amante
ampara, pois, a asa fraturada do desejo
e nela deposita a frágil confiança
o vôo de ante-noite-orvalho-lua-cega
e suas criaturas febrifamintas e ciosas
nos redimirá em raio e gozo, estalo e estilo
na boca desdentada e mesmótona das manhãs.

já pensou em iluminar?
iluminar-se e não pensar 



A mãe gentil












O meu país navega em minhas veias
onde não há sinal de calmaria
no meu sangue esse país deságua
e no meu coração, por fim, naufraga

O meu país caminha em minhas veias
com suas vestes, rotas, maltrapilhas
esfomeado, no meu corpo, clama
e dos meus olhos salta e se derrama

Esse país que é tão meu, que é minhalma
que se confunde à dor desse meu peito
esse gigante, niño sonolento

me faz vestir o manto brasileiro
tecido em sangue, do melhor que havia,

en el tercer mundo, tropical sangria.