quinta-feira, 28 de junho de 2018

Diamantes



            










 Para um casal em bodas




De onde venho
a luz, no fim do túnel, é pura escuridão.
A vida, e sua substância de desespero, me aguarda
com sua cintilante vigilância, vertigem e voragem.
As pernas de minha mãe, abertas, me expulsaram, depois
de escancararem-se em gozo para o corpo lânguido do meu pai.

De onde venho
calor e lubricidade são meras lembranças
daquele tempo em que eu não era e que, por não ser, não cogitava
a faca, a foice, a clava, o coice, o martelo, o capital, a mercadoria
a bruta labuta insensível do dia-a-dia
Era apenas possibilidade

De onde venho?
Da sanha e saga da catinga repousando no cerrado
fugindo de casa, trilhando o mundo abrasador de cinzas, não preás
os pés sujos com a poeira dos caminhos
Pai e mãe e seus meninos,
tão meninos quanto eu
tão perdidos quanto eu
tão frágeis quanto eu
tão filhos quanto eu.

De onde venho, amigo
não há espaço para ter medo
não há perdão para quem vacila
nem segunda chance para quem escorrega
o tombo é certo
certas as feridas.

segunda-feira, 25 de junho de 2018

Oximoromaquia













Pensando o poema, me vejo assim emimesmado
compondo aporias:
Supérfluo imprescindível?
desprezível mais que necessário?
Que dizer da poesia
já não dito e silenciado?
Será talvez, e realmente, o nada que é tudo
no símbolo pessoano encalacrado?
Onde, ó musas tortas, onde o poema?
No verso e fora dele? Na asa e fora dela?
No avesso e desaforo
de um inverso verso áporo sem foro?
Desabrigado? Sem teto? Sem casa?
Senhor deus dos desconsolos
Onde o poema? Que é da poesia?
É mesmo tudo? nonada é?
Emimesmado sigo rascunhando
Meus versinhos, derramando-me
expondo minh’alma fingida no varal
e o resto é o vento, o vento, o vento...
soprando meu silêncio.

sábado, 16 de junho de 2018

Impressions of Calgary

















Meio dia na cidade limpa e seca
monumento de concreto em genuflexão ante a beleza
a eternidade pétrea logo ali, na linha lábio
de Deus.
A nave de cristal e aço sobrevoa as fomes
grandiosas fomes sempre saciadas em
plástico: copo e prato e talher
no Core, na Stephen, na 17ª, no Chinook, em Cross Iron
Plástico: garfo, faca e o peito da mulher
em Eau Claire, Sunnyside, na Kensington Road
Plástico: sacos, caixas, flores a recolher
em plásticos.
E o sol frio de Calgary iluminando a acidez do curry
saboreado, em silêncio circunspecto, pela indiana e seu marido afegão
O frango, preparado por mãos chinesas,
banhado em maple syrup, honey and garlic, desfila
nos pratos de plástico, enfeitado por brócolis,
a 19 dólares e 90 cents
e sofre a espetada do garfo de plástico, o corte da faca de plástico,
e o dente dourado do redneck que anseia Stampede
no verão e Flames por todo inverno.
O vento, enovelando-se na vermelha Peace Bridge,
corta as avenidas a partir do Bow
e passa pelas skyways muito limpas e aquecidas
que, suspensas sobre as ossadas de esquecidos blackfoots,
parece não perceber que o
plástico, ao fim do dia, aos milhares
aos milhões, aos bilhões, repousará em algum canto
respirando seu veneno próximo às rochosas
esperando o momento de flutuar no mar
- há muitos quilômetros de ali -
onde ficará, intacto, com a lembrança do curry
e do maple syrup,
por milhares de anos, quando talvez nem haverá Calgary
ou skyways ou Stampede
mas certamente permanecerá, latejando, uivando
a fome daqueles que nunca puderam estar ali
sob o cristal e o aço da food court
e continuaram e continuarão engasgados
como tartarugas entaladas com o plástico
que a indiana, o afegão, o chinês, o redneck jogaram no lixo
E eu me pego triste e sem apetite
a pensar que
não há possibilidade, além do sonho, de que todo o planeta
igualmente, humanamente, deliciosamente
saboreie essas texturas e riquezas
O banquete é para poucos
num mundo de limitados recursos e plástico descartável
A bocarra voraz do capital em suas tetas
sorvendo o leite do planeta à grandes goles.
Bilhões de homens e mulheres poluem o planeta
com sua esperança de homens e de mulheres descartáveis
como plásticos
incomodando o sono calmo dos que têm o que comer
com o ronco de seus estômagos na vibração dos trovões sobre Icefield Road
anunciando a nevasca
a tormenta
a violência eventual do Bow e seu irmão Elbow nos grandes degelos
e que arrasta o indiano, o afegão, o redneck, o chinês e o capital
em suas águas de esmeraldina palidez e extremo frio
no fluxo trágico da história.
O que amo em ti, eu sei, é projeção do que há de melhor em nós
a gentileza e o respeito extremos
ocultos em nós, expostos em ti.
Tua silhueta espelhada encanta e cega, ó Calgary
e apesar de toda a esperança fraturada
insistes em berrar onward, onward, onward
mas, te pergunto, pra onde?
Me diz: pra onde?