sábado, 30 de novembro de 2019

Emergência: poema para ganhar prêmios importantes



















Estava esperando atendimento na
emergência
do Daher Hospital
quando
pensei na possibilidade de
escrever
um poema.
No monitor, à minha frente, as senhas alter
navam-se: Clínica Médica 23 Antonia Souza
consultório 1.
Clínica Médica 24 Marília Ferraz consultório
13
e eu pensando em um poema
não qualquer poema
um que ganhe prêmios importantes
algo moderno, quase fala, sem
penduricalhos, nada de
metáforas
simbologia, analogia
lego da linguagem, balela, nenhum gia
quero versos
num tônus despojado de poema moderno
não confessional, porém
absolutamente
pessoal. Num modo meu
uma estética minha
minha cara
um poema descolado.
Clínica Médica 27 Nuno Guarnieri consultório 100
A mulher ao lado tosse e o menino
chora
sente dor
e eu queria tanto escrever um soneto
caretinha, quadradinho
mas sonetos estão fora de moda
e não ganham prêmios importantes
a poesia traz pó de chão pisado
na nervura de sua orfandade
Minha dor não impede que eu escreva
mesmo
se
o barulho da emergência preencha meus dois ouvidos da mesma orelha
Clínica Médica 37 Wanda Garcia Brandão consultório 2
As senhas são poemas no monitor
Clínica Médica 44 Alberto Cagiano consultório 14
Logo serei chamado
e essa dor se acabará
mas meu poema
- esse que ganhará grandes prêmios –
não.

terça-feira, 19 de novembro de 2019

O gato-dragão

















(sobre um poema de Alberto Bresciani)

Existe um gato
Gato-dragão
de garras afiadíssimas
como o olhar da minha mãe
a mão pesada do meu pai
À noite, escuto sua presença
a ronronar na escuridão do quarto
e, em silêncio, me encolho
como fosse uma bola de lã
mas as marcas no meu corpo
e as manchas de sangue
em meu lençol
me ensinaram que
o gato-dragão
não gosta de brincar.


quarta-feira, 12 de junho de 2019

Acendam a luz : a poesia de Alberto Bresciani


   
 

















 Acredito, como Ginsberg e Ferlinguetti, que a poesia reside na respiração, nas pausas, na pulsação do corpo; que a poesia é, também, um fenômeno corporal. O poema, essa forma concreta de mistérios, esse jogo de significantes, essa espécie de Lego da linguagem, é fruto desse movimento de corpo que, entre a intenção e o gesto, surge no trabalho árduo do poeta. O estranho no poema se dá, por vezes – e são muitas, naquele instante em que um poema te penetra, suspende a tua respiração, e por puro encanto - que não se deixa reduzir a uma explicação ou análise, te prostra sem fôlego, tentando entender como aqueles signos impressos conseguiram fazer vibrar, em ti, uma região quase intocada pelo dia-a-dia. Embora corpórea, sabemos que a poesia nasce no desvão imenso do espírito, como nos diz o cônego machadiano. Esse é o poder e o mistério dos versos de “Fundamentos de ventilação e apneia” (Patuá, 2019), de Alberto Bresciani, um dos grandes poetas contemporâneos, radicado no Planalto Central.

Em “Cardume”, uma voz nos declara que É preciso calar, / porque em silêncio respiramos melhor. Dois versos que antecipam a luta empreendida pelo poeta, sua empreitada de dar nomes ao que escapa à nomeada. Isso é matéria de poesia, como também o é voar fora da asa e manchar seu terno com a marca das ruas. É no silêncio, ele percebe, que reside o segredo da reflexão sobre o mundo e, particularmente, da linguagem poética. No poema, o silêncio presta-se a abafar o terror da trincheira, como se não fosse essa a condição básica para a “Eclosão”, agindo assim,  o poeta, como o vate lusitano: afirmando ser o que realmente é, Perdíamos o ar, para ganhar mais, logo depois/.../a eclosão, o resto das nossas vidas.

Há nos poemas de Alberto Bresciani, um olhar atento às coisas do mundo. Olhar delicado, meticuloso, às vezes de uma doçura tremenda, denunciando um poeta que, a parte de toda a candura, se revela crítico da frieza das relações humanas. O que, à primeira vista, parece óbvio: preocupar-se com o afastamento do outro, com a insensibilidade humana, torna-se matéria fina nas mãos do poeta para excelente poesia. Fingindo-se isento, declara-se militante. Em tempos de redes sociais, do culto às aparências, da celebração do imediatismo, da frigidez ética e moral, o poeta, em “Desapego”, declara-se atento sim: Claro, não seremos cegos, lamentaremos / um pouco, bem mais talvez do que insetos. Não confundir com cinismo o que, na verdade, é puro pessimismo gracilianista, mesclado a ironia machadiana, autores que desconfio e infiro sejam referência em prosa do poeta. 

            Fundamentos de ventilação e apneia mascara, sob a falsa forma de um manual para pneumologistas, a discussão filosófica de nossa animalidade. A fronteira entre o humano e o bestial, tema clássico da literatura, adquire contornos de grande sensibilidade nos versos de Alberto Bresciani. Utilizando-se de um processo sutil de analogia, o poeta consegue imiscuir-se no reino animal para nele nos meter, com fundamento natural, como fora um juiz que, ao analisar os autos de nossa humanidade, concluisse pela irreversíbilidade de nossa porção-bicho. Unidos no pressuposto básico da sobrevivência – sem ar, não há vida – homens e animais partilham o planeta. Em vantagem óbvia com relação a estes, aqueles, nos versos do poeta, empreendem o trabalho de destruição do habitat comum.

Nos poemas, os animais são analogias vivas de nossa própria existência. Essa espécie de zoologia poética, de sublime catálogo bestial que inclui peixe, girafa, cardume, golfinho, bisão, hienas, ouriços, anêmonas, aves, bicos, penas, killifishes, etc. nos remete ao que em nós pulsa de animália, sim, e nesse processo de construção poética magistral, focaliza obviamente a grande diferença entre nós, demarcando territórios.

Assim, somos o peixe que se debate sem ar; o peixe voador que engole o ar, arranca ar...Sobe, sai da água, tem asas; constatamos pela veia poética de Alberto que somos, sim, espécie de bisões, quando Olhamos em frente / e nos perguntamos / os olhos bovinos / se este é  mesmo / o nosso lugar; quem há de negar que, de uma certa maneira, não somos tipos especiais de ouriços que ferimos e nos ferimos por conta dessa similaridade? Que nossa língua sofra as consequências de nossos espinhos? Ou então que somos aquele bicho-preguiça, lerdo, absorto em sua imobilidade, alheio ao ferrão que nos espreita? E não sabe, não vai saber/ do sobrevoo da harpia.

Crudelíssima imagem que resgata nossa natureza famélica sobre a terra, o poeta nos vê hienas, reduzindo o grande segredo de nossa sobrevivência: A fome é o que mantém / as hienas acordadas. Esse animal que se alimenta de restos putrefatos, comensal do Hades, não seria também um pouco humano, na medida em que nos alimentamos sim das tragédias alheias expostas nos jornais? No semáforo? Nas ruas sujas de São Paulo, onde testemunhamos anestesiados o desfile de homens e mulheres arrastando-se com seus cobertores e a fome de opiáceos? Esses mesmos bichos, como no poema de Manoel Bandeira, que remexem o lixo são aqueles que seguem sua sina inexorável, como a manada que encara a travessia, mesmo ciente do silente crocodilo à espreita e atiram-se à correnteza / Precisam saber / o outro lado. Sim, é da natureza humana essa necessidade de saber o outro lado, de provar todas as frutas, todos os sabores e prazeres, mesmo que o bote de um crocodilo eterno seja a surpresa indesejável.

As imagens construídas por Alberto Bresciani, em sua bela singeleza, tornam-se cruéis com a visão implacável de nossa natureza. As grossas teias que nos enovelam pela vida, nos levam por caminhos que, bifurcados, no mais das vezes nos tornam um outro, aquele que não somos e que gostaríamos de ser. Como um lobo-guará que, perdido em diversa topografia, vê-se forçado a perder sua natureza e assumir uma outra pele. Exatamente como muitos de nós – quem sabe a maioria de nós? – que vivemos num canil, quando poderíamos correr pelo cerrado?  O lobo-guará / perdeu o caminho / Por descuido / entrou no canil / Finge virar latas / late como pastor. A tragédia de nossas vidas tão banais num curto e belo poema.

A sucessão de poemas que tocam o coração do homem a partir da fera é uma constante neste belo “Fundamentos de ventilação e apneia”. Uma pergunta que repousa entre as linhas do poema: quem está em extinção? O pássaro mudo, encolhido, tremendo diante da serpente? O homem, mudo, encolhido, diante do outro homem? Que ave desiste da rota migratória se não aquela bípede – nuvem de calças maiacovsquiana? É necessário conhecer-se, saber seus limites, humildemente reconhecer sua natureza humana, onde o super-homem é mito, fogo de palha, matéria de filosofia. Somos carne, respiração e a falta dela. Somos, cada vez mais, espécie de killifishes chafurdando desesperados na lama de nossas existências sem perceber que nunca terão a chance de beber outra chuva

Mas o que mais importa é reconhecer que somos porque outros há e é da nossa natureza o afeto, o aproximar-se, o proteger-se. Somos o animal capaz de compor poemas e pelos versos enxergar-se: Quando você saiu, / as sombras / tinham penas negras / e ficaram pela casa, / pela garganta / as suas penas // Ontem entendi / e acendi a luz.

Ouçamos o poeta: acendamos a luz diante da grande poesia.


quarta-feira, 15 de maio de 2019

A massa















Em seu apartamento de Higienópolis,
Ferraz, poeta sisudo e hermético,
tem grana, fama e o amor das mulheres
- e escreve mais um poema.

Ferraz fala do seu coração
e do coração alheio;
da dor de ser homem, de ser mulher,
de ser do meio, de não sê-lo,
de Deus, do Diabo, da morte
do desespero.

Ferraz fala da luta de classes,
das revoluções sonhadas pelos sem sorte
do olhar da amada, do último consorte
do cu do mundo
dos cus e dos mundos.

Ferraz fala das fomes dos homens,
da injustiça e da revolta
inflama-se.

Batem à porta, incomodando sua sisudez hermética
É o entregador da Uber eats
que nunca leu um poema, não sabe quem é Ferraz
não pensou em revolução, mas tem medo da morte
e que veio de bicicleta de um cu de mundo,
sob a chuva fria de Higienópolis
trazer-lhe o spaguetti ao sugo.

segunda-feira, 13 de maio de 2019

Hidromancia

















Quando observo a água calma do Paranoá
penso em ti, profundamente...
que segredos guarda a tua consciência?
Que sentidos dás às tuas desistências?
Nesse território em que pisas com volúpia
todas as descobertas
- mesmo as vãs, as vagas
as parcas, as miúdas, as vesgas –
tornam-se marcos, marcas
que tu celebras e compartilhas.
Mas te pergunto, alma rara amiga,
que fazes tu com teus demônios?
Eles que se abrigam
nesse latifúndio que é teu coração.
Que me dizes? Anda, fala!
Que te mostram quando dançam
sob teu peito que pulsa alucinado?
Que te trazem quando à noite vagas
pelas luzes da metrópole iluminado?
Que são deles quando dormes?
Com que sonhas, quando sorris?
Que pesadelos caem sobre ti quando tremes?
Na certa, assustado, negar-me-ás teu relato
e, como Numa Pompílio, o enterrarás
para que o arado de outro possa
vir um dia, quem sabe,
conhecer teus segredos
tua consciência
tuas desistências
teus medos
todo o perigoso mundo dos desejos
e identificar-se com teus demônios
esses mesmos que se mostram
na água calma do Paranoá.


quinta-feira, 18 de abril de 2019

Conversa com Drummond

 















"Ruinas", nanquim, LAF 2019


Não havia pedra
no meio
do caminho, Carlos.

Havia,sim, o caminho
o medo -
(Suas possibilidades)
e a terrível sensação 
de haver uma pedra
ali no meio.

E de repente, meu poeta,
percebemos,
fatigados,
por trás das retinas,
que
a pedra
sempre fomos nós.

sexta-feira, 12 de abril de 2019

Utopia



O desejo aspira
o não-lugar
(não para estar)
para ser.
É como o Outro
que me justifica
e me faz ser
só porque é
⁃ quando está -
A menina abre a geladeira
pega a coca-cola
em silêncio
e pula do oitavo andar
(não para estar
nem para ser)
porque aspira
o não-lugar.

quinta-feira, 7 de março de 2019

Pesadelo
















O estranho, aquarela e nanquin, LAF, 2019



Não sou quem dorme, quando durmo
outro me habita, desperto
em sonho e desespero.
Quem o socorre, quando a noite
chega, estrelada e vazia
e há silêncio e pegadas
no pulsar de um grande pesadelo
que respira e transpira
no corredor dos quartos?

Esse outro, que nunca encontrei
e que me é tão familiar
- o estranho -
sou eu perdido, desarmado,
entregue à dimensões aonde
nunca chegarei, mas ele sim,
ofertado à legião de demônios
que se alimentam dos meus medos.
Quem o resgatará do deserto
quando caramujos secarem sob as pedras
e os peixes, asfixiados, pararem de pular
pela praia

e tudo for silêncio?

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

O Ninho



















Ah, Higienópolis dos fulcrais desejos brancos
Eugeniópolis cruel e amoral destes trópicos
De longe observas o exército subumano
Que te cerca à mesa dos bares
Nos sinais de trânsito
Nas portas dos restaurantes.
Devo dizer a eles o que já sabem?

Ninguém te quer por aqui, ó bestial
criatura antropomórfica
excremento vivo, indesejado
Esconde, pois, teus beiços caídos
e tuas ventas escorrendo
e parte para os infernos que
te cativam, que te alimentam
Sai, some, seca.
Vai vagar pelas ruas, sob a noite
Onde o repouso e a mansidão?
- avara sina, amara via, tua escolha –
A cidade não quer teu conforto
ela expele os teus desejos
Nos esgotos, nas vielas
Tu, um trapo, treco, troço, trash
lixo que se esconde nos escuros
no acre ácido azedume da sarjeta
Tua carne parca e podre de espantalho
- flesh-trash, resto, restolho
Entulho, detrito, dejeto -
e teus poucos dentes negros
Rebotalho, esparge o fétido hálito
de tuas entranhas
teu útero, antro; teu abraço, armadilha
O chão frio, teu pouso e morada
A chuva e o sol, teu cobertor
de papelão e jornal que nem lês
Tuas vestes imundas, zumbi real
Teus dedos queimados, olhar vermelho
A fome que não sentes, mas que te devora
E Eugeniópolis anseia teu extermínio
Tua imolação, tua internação
Tua cura ou tua desgraça
Onde o repouso e a mansidão?
O Valongo sob o minhocão no centro
da metrópole que o devora
devagar, lentamente, crudelissimamente
A nau que os arrasta pelas noites
em bandos de desesperados
Não te querem assim, ninguém
te quer por aqui, todos
te querem no olvido, no rabecão
num saco preto de lixo, corpo frio
olhar congelado
Jogado na stultifera navis dos desvalidos
Rio acima, distante, empacotado
Miúdo, carcomido, rastejando
Enquanto tu, bestial criatura
que andas com os pombos e piolhos
quase como rato sem cauda
Os pés encardidos, as unhas compridas
Sonhas. Por que sonhas?
Por que é só o que te resta
Sonhar o afeto, talvez?
O abraço de alguém?
Enrodilhado em si, feito um feto
na calçada
Só querias um ninho onde pudesses dormir
Mergulhar no esquecimento
Um ninho, um ninho.




sábado, 9 de fevereiro de 2019

Poeminha japonês



















para Mishima




Um dia espada,
outro crisântemo
Quem há de não saber
o quão distante são
horizonte e vertigem
- irmãos da miragem -
no peito de um homem?

E no entanto, em
perto, dentro, aqui
como raiz de rododendros
em jardim de pedras
ígnea delicadeza
plácida rutilância
seiva e magma
pulsação e silêncio.

Se o avesso é vero
e vário o exposto
eis por que espada
eis por que crisântemo
eis por que o corte
eis por que eu sangro.

A circunstância da memória – impressões sobre alguns sonetos de Antonio Carlos Secchin
























Não se apreende um poema numa primeira leitura. Poesia é bebida a ser sorvida lentamente pois, devido ao seu alto teor poetílico, não se a saboreia num gole apenas. É algo assim como o prato da vingança, uma iguaria que exige tempo e frieza para ser saboreada. Um poema não se entrega à primeira vista, não totalmente. Deixa-se ver, seduz, atrai, mas não se mostra aos apressados. Nunca. Uma espécie de cavalo selvagem pronto a derrubar o primeiro cavaleiro incauto, inculto, que ouse montá-lo. Que dizer então de uma antologia? Da reunião de diversos desses acepipes maravilhosos num banquete da linguagem? A leitura lenta e prazerosa de “Desdizer”, poemas reunidos de Antonio Carlos Secchin (Topbooks, 2017), tem me conduzido por caminhos surpreendentes. Vejo-me, pé ante pé, tocando a pele de seus versos, sempre desconfiado da capa de beleza aparente que teima em esconder ainda mais beleza no que oculta. Se o manifesto encanta, o latente arrebata. Na travessia que iniciei muito recentemente na poética desse ensaísta e acadêmico, obriguei-me a cumpri-la a lerdos passos, pois se o poeta é mesmo um fingidor, avalie o poeta que é teórico e crítico e que domina a palavra como quem domina um potro selvagem, nela montando e fazendo-a manter o trote ou o galope a seu bel prazer. Um leitor inseguro é sujeito provável a saborear o tombo, daí a necessidade de ser lento e atento. O volume condensa grande parte da produção poética do autor, cobrindo um período que vai de 1969 a 2017. São aforismos e versos que se espelham e refletem o que de melhor se fez na poesia do fim do século XX e começo do XXI. Secchin reuniu no volume a veia poética do vate em processo: dos textos jovens (que não demonstram a juventude e que nos faz crer que o poeta já nasceu velho, no sentido de maduro, não de mofo) àqueles que, ainda quentes pela proximidade de seu cozimento, se nos oferecem no banquete. Ative-me aos sonetos, forma fixa medular da tradição poética e que o autor domina com raro requinte. “Desdizer” nos apresenta duas seções específicas com sonetos: “Dez sonetos desconcertados”, que parecem configurar uma preparação em grande estilo para a arrebatadora seleção de “Dez sonetos da circunstância”. Nos “desconcertados”, Secchin exercita como temas o humor e a exploração do cotidiano, indo de um soneto ao molho inglês (não quero um bife, quero o amor de sobremesa) a outros dois sonetos à boa vizinhança (Troquei de celular, mas deu problema/ Amanhã pego onda em Saquarema...Eu não invejo o morador da cobertura/ o sol da tarde deve ser uma tortura). Em “Soneto da dissipação”, a presença de fantasmas nos lençóis denuncia a solidão do poeta e antecipa a constatação dorida da passagem do tempo. O “Soneto profético”, que tem toda a cara de circunstância, determina o destino trágico do homem numa deliciosa inversão de sentidos “seremos bem felizes no passado”. É justamente o tempo a matéria circunstancial dos sonetos seguintes. O passado, a memória, a passagem inexorável do tempo pelas rugas de um espírito que, eternamente jovem, vê-se aprisionado na ordem das coisas que o aproximam do fim, que testemunha o envelhecer, a decrepitude. É o menino que se vê menino, embora seu olhar maduro reconheça a perda daquela meninice em “O menino se admira” (O menino se admira no retrato/ e vê-se velho ao ver-se novo na moldura;/ o tempo, com seu fio mais delgado/ no rosto em branco já bordou sua nervura). A constatação de que não tenho tempo para ser eterno (“Repara como a tarde é traiçoeira”) é reforçada pela lembrança melancólica de um passatempo de criança em “De chumbo eram somente dez soldados” (Meninos e manhãs, densas lembranças/que o tempo contamina até o osso/fazendo da memória um balde cego/vazando no negrume do meu poço/ Pouco a pouco vão sendo derrubados/ as manhãs, os meninos e os soldados). O poeta reconhece o tempo a derrubar todas as coisas em seu trajeto irreversível.  Os dez sonetos da circunstância passam-me a nítida impressão do trágico, uma vez que lidam a sua maneira com o caminho do homem sobre a terra, sobre o nascer, o crescer, o findar-se. O poeta sabe – e nos faz saber – que em meio a nós escorre sorrateira/ a canção da matéria e da ruína” (“À noite o giro cego”). E se vibra em nós o anúncio da ruína, vibra mais ainda a lembrança, a presença incômoda de um passado que contamina coisas, cheiros, roupas, gentes, a própria casa: O silêncio transborda pelo forro/E eu já nem sei o que fazer de tanto/passado vindo em busca de socorro (“A casa não se acaba”). E quem pede socorro exatamente? Que voz será essa que, ao poeta, envia seu grito de ajuda? Talvez o menino que escondeu-se numa dobra do tempo e ficou lá, sozinho, desamparado, esperando que o adulto em que se tornou o venha buscar pela mão. Só a poesia e a psicanálise para empreenderem com sucesso essa viagem de resgate. O poeta se vê no tempo e se questiona “Estou ali, quem sabe eu seja apenas/ a foto de um garoto que morreu” e sem receio empreende o mergulho em direção à constatação de que aquela figura no retrato, transfigurada, o faz perceber “Eu o chamo de meu filho – e ele é meu pai” (Estou ali...), epifania muito similar, embora evidentemente muito pessoal, à que Vinicius de Moraes nos faz experimentar nos versos da canção “O filho que eu quero ter”. O trajeto desse menino no retrato, no espelho, na verdade desemboca no poeta em seus cinquenta anos (E para coroar todos os danos/bem-vindos sejam os meus cinquenta anos) em “Poema para 2002”. Sigo minha viagem pelos versos de Antonio Carlos Secchin, perdido e desejoso de conhecer cada porta aberta em seus poemas – e são inúmeras, como nos concedem todos os bons poemas. Devagar, lentamente, como convém a um prato que se come frio, mas que depois de comido, incendeia a alma, sigo me alimentando dos poemas de “Desdizer”.