quarta-feira, 15 de maio de 2019

A massa















Em seu apartamento de Higienópolis,
Ferraz, poeta sisudo e hermético,
tem grana, fama e o amor das mulheres
- e escreve mais um poema.

Ferraz fala do seu coração
e do coração alheio;
da dor de ser homem, de ser mulher,
de ser do meio, de não sê-lo,
de Deus, do Diabo, da morte
do desespero.

Ferraz fala da luta de classes,
das revoluções sonhadas pelos sem sorte
do olhar da amada, do último consorte
do cu do mundo
dos cus e dos mundos.

Ferraz fala das fomes dos homens,
da injustiça e da revolta
inflama-se.

Batem à porta, incomodando sua sisudez hermética
É o entregador da Uber eats
que nunca leu um poema, não sabe quem é Ferraz
não pensou em revolução, mas tem medo da morte
e que veio de bicicleta de um cu de mundo,
sob a chuva fria de Higienópolis
trazer-lhe o spaguetti ao sugo.

segunda-feira, 13 de maio de 2019

Hidromancia

















Quando observo a água calma do Paranoá
penso em ti, profundamente...
que segredos guarda a tua consciência?
Que sentidos dás às tuas desistências?
Nesse território em que pisas com volúpia
todas as descobertas
- mesmo as vãs, as vagas
as parcas, as miúdas, as vesgas –
tornam-se marcos, marcas
que tu celebras e compartilhas.
Mas te pergunto, alma rara amiga,
que fazes tu com teus demônios?
Eles que se abrigam
nesse latifúndio que é teu coração.
Que me dizes? Anda, fala!
Que te mostram quando dançam
sob teu peito que pulsa alucinado?
Que te trazem quando à noite vagas
pelas luzes da metrópole iluminado?
Que são deles quando dormes?
Com que sonhas, quando sorris?
Que pesadelos caem sobre ti quando tremes?
Na certa, assustado, negar-me-ás teu relato
e, como Numa Pompílio, o enterrarás
para que o arado de outro possa
vir um dia, quem sabe,
conhecer teus segredos
tua consciência
tuas desistências
teus medos
todo o perigoso mundo dos desejos
e identificar-se com teus demônios
esses mesmos que se mostram
na água calma do Paranoá.