terça-feira, 29 de setembro de 2020

Os mesmos

 









A máscara, Fred Svendsen




Podia tanta coisa

(os desvios)

não fossem os trilhos

Talvez o mundo

(sem fronteiras)

não fossem as amarras

Ou os sete mares

(sem calmarias)

não fossem as âncoras

 

Podia outros caminhos

(mesmo íngremes)

não fossem as pedras

Outras cidades, países

(planetas)

não fossem as correntes

Talvez outros amores

(desejos)

não fossem as culpas

 

Podia ser outro e melhor

(distinto)

não fossem os medos

Quem sabe outros modos

(jeitos, maneiras)

não fossem os outros

Mas nada parece romper

os trilhos, as amarras, as âncoras, as pedras, as correntes, os medos, as culpas, os outros

e seguimos

os mesmos.

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

A fossa

 



 

        Sobre um poema da Adriane Garcia

        Aos meus amigos poetas

 

Não se atreva a salvar um poeta

é no afogamento que eles respiram

vivem no mergulho mais profundo

onde a poesia encandeia

seus olhos frios

de peixes acostumados às fossas.

 

Não toque neles

retirá-los, à força, da água,

por melhor que sejam seus motivos,

é determinar a sua morte

e o fim da poesia.

 

Um poeta em conforto

é criatura inerme

porco-espinho nu

serpente sem presas

tigre sem garras.

 

Deixai, portanto que eles se afoguem

a cada braçada em direção ao abismo

num lugar que nunca apreenderemos

e tragam a luz de seus versos para nossa escuridão.

 

Só os poetas percebem

a lenta agonia

que sofremos

sem nos darmos conta

que morremos

como peixes sobre a terra

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Outro poema sobre uma notícia de jornal


 

Thaylanne voltava de uma festa no entorno do Distrito Federal

foi abordada por três homens de bem

que lhe berraram ao ouvido que sapatão tem que morrer

e começaram a espancá-la com barra de ferro, madeira e concreto

quebrando-lhe dentes, o maxilar, rachando seu crânio, macerando sua carne

e a deixaram sem sentidos, caída sobre a lama.

Thaylane tinha dezessete anos e muitos sonhos

que se findaram numa poça de sangue.


Há, sim, demônios no caminho

vestem dentes brancos

usam branco colarinho e crucifixo

vão à missa aos domingos com a Bíblia sob o sovaco

comungam e beijam os pés do senhor morto

num langor contrito e convincente

batem gentilmente em nossas costas

e nos aniversários apertam as bochechas das crianças

mostrando a cara falsa da bondade.

À noite, quando a noite é mais escura

dentro de suas consciências frias,

saem pelas ruas e mastigam todos os anjos

devoram todos os santos

destroem toda beleza.

Esses demônios dormem

em seu vizinho, em seu irmão, seu delegado

seu patrão, seu professor, seu namorado

dormem ao lado de quem está ao seu lado

e quando acordam...ah, quando acordam...

o mundo mostra-se mal e podre

e sem milagres.

 

LAF