sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Nome

                       


Para Michel Foucault

A coisa vista será nova
medirei com régua,
compasso ou coração?
Observarei a coisa com óculos? lupa?
micro ou telescópio?
Talvez feche os olhos para enxergá-la melhor
e assim será nova a coisa, sempre.
Darei então um nome à coisa
tomarei posse dela
e a depositarei no mundo já nomeado
retirando dela a graça e o mistério.
Depois entrarei na coisa,
que já não será “a coisa”,
e darei ao mundo fora dela um novo nome.
Essa brincadeira de criança
tem se repetido desde Homero.
Quem é o ser, se houve algum,
que se apossou de Tróia e de Helena?
Que nome darei à Ulisses
daqui da outrora-coisa minha?
Que mundo meu me aguarda
a mim, sua coisa ainda desconhecida?
São milhares as vias entre os cosmos
e eu apenas quero um nome
um nome apenas para caminho.


quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Tabu

  




A embriaguez de Noé, Michelangelo, Capela Sistina


Matei meu pai a dentadas
comi-o, provei da raiz de minha árvore
sepultei-o, sob obturações gastas, em minh’alma cariada
mato-o a cada parco e porco dia que perco
conspurco-o para sobreviver e ser
silencio sua boca, escuto seus gritos
mordo sua língua, saboreio seu desejo
selo seus ouvidos e arranco seus olhos
para enxergar melhor
cumpro o meu papel de caminhante
traço o meu caminho em seu cadáver
estendido no varal que armo em meu quintal
quem de vocês não trás às costas esse morto-vivo?
quem, de nós que nunca nos saberemos, 
não exerceu o ofício de coveiro e de obstetra a cada manhã?
sinto sua crença em minha descrença
sua coragem em meu medo
e seu pavor nos meus passos.



sexta-feira, 31 de outubro de 2014

A História da História










Reza a história
Deus fez o mundo por classes
a operária e seus panfletos
a campesina e seus novilhos
a milionária e seus fedelhos
a burguesia e seus conflitos

PS: a burocrata e seus adendos

Deus fez um mundo perplexo
o operário e o camponês
devotos
o milionário e o burguês
devassos

Reza a história
o operário escreveu panfletos de modo aflito
o camponês perdeu novilhos de fome e sede
o milionário criou fedelhos no ócio e vício
o burguês criou complexos de medo e cio
o burocrata organizou fichários e verbetes
e pôs o Senhor no arquivo morto
por excesso nos pendentes


Deus, arrependido da criação,
para reparar o erro
inspirou um pobre alemão
a fundar o Partido Comunista
e finalmente, como bom baiano,
foi para Arembepe pegar um bronzeado
deitar suas fartas barbas na água quente dos trópicos
e esperar a hora do juízo
... que ninguém é de ferro.




sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Do homem


















Onde o homem bota a mão
Há beleza e podridão
Se é de humana gestação
Tens o gozo e a danação.

Onde encontro o humano tato
Tenho a flor e o chão queimado
Onde o engenho humano é dado
Vejo a cura e o abortado.

Besta e anjo, deus e caos
Segue o homem seu calvário
De ser céu e ser inferno
Sendo um que é sempre vários
De ser luz e escuridão
Ser certeza e ser engano
Monstruoso e angelical
Simplesmente ser humano





sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Dono de mim















Perdoa, amor, se não te trago flores
Nem perfume de raro olor
ou singularíssimos odores;
se não te mostro dentes brancos,
roupa de linho, mãos macias; perdoa
se não te toco como o hálito de um deus
ou se não rio o riso de um encantado.
Perdoa, amor, se não te ofereço conforto
consolo, aconchego, carinho e colo.
Perdoa se caos e não sossego,
se não tenho nada daquilo que esperas,
se não sou realmente aquilo que projetas,
se não estou propício a ser e ter o que te agrada,
pois sou dono de mim.

Perdoa, amor, se não tenho palavras raras,
se minha língua baba mais do que o devido,
se meu suor é mais visguento que o preciso,
se meus pés correm mais caminhos que os avisos
de não correr, de não suar e de não babar.
Perdoa, amor, se meus limites vão além do teu infinito,
se sou muito maior que o teu incabível,
se minhas asas te importunam, causam espirros,
se não posso nunca ser o que pensas que precisas
Perdoa, amor, por amares em mim o não tido,
por portar a nódoa, a marca, a mácula das ruas
e por trazer as mãos sujas do barro do real,
pois sou dono de mim.







terça-feira, 5 de agosto de 2014

Script

Se morre um menino
sob as patas do adulto triste,
o que existe,
além do dedo em riste?

O que resiste
é o inexorável destino que ainda insiste:
o adulto morto num menino que persiste.




terça-feira, 15 de julho de 2014

Dos desertos








Dedicado a um poeta em depressão


Os poetas são animais em extinção
Tombam como sibipirunas e jacarandás
Rarefeitos como ar puro
Vão-se feito ararinhas azuis... minguando.
Os bons versos são mico-leões dourados
Carecem de que se lhes dêem o valor de sua raridade
Somem-se em vez de somarem-se
E nisso vai-se também nossa alma apaixonada.
È preciso preservar os ipês e os poetas
As Baleias e os versos
A ética e o tigre albino de Pequim.
É necessário proteger a mata atlântica
E resgatar os bons sonetos
Pois se morremos com rios poluídos
Tornamo-nos tristes sem a poesia
Bestas ficamos sem arte e sem ar
Sem magia, sem estranhamento, sem ritmo
Sem pulso, sem penas, sem escamas, sem rimas
Sem vôo, sem delírio, sem mergulho, sem bicos
Sem lábios, sem garras, sem fibras, sem vida.
Temos mata, rio e bicho em nossa alma
E se matamo-los fora de nós
Morremo-nos também inteiramente
Sobrando-nos a assustadora possibilidade
De rimarmos o deserto ante nossos olhos
Com o deserto de nosso espírito.


quarta-feira, 9 de julho de 2014

Eu e ele







"Weird cloud formation", Goro Fujita


Quando digo não
meu coração reclama
ele sabe - e eu sei -
que definitivamente
não nos conhecemos

ele é sempre o bom menino
eu, o sacana
sou sempre o estraga-festa
ele, o bacana

meu coração não me engana

ele ateia o fogo
eu que vou em cana
ele quebra os vidros
eu que levo a fama
ele o mais esperto
eu sempre o banana

meu coração me esgana.





terça-feira, 8 de julho de 2014

Evangelho do Lodo









À maneira de Manoel de Barros


Sinto as raízes cantando
no tom do lodo e das pedras
o cheiro doce da luz das rãs

a carne farta da terra
anoitecendo nas gias
lesmando o sonho...desacordar.

Amanhecerei orvalho
entardecerei riacho
anoitecerei no teu suor

madrugarei tempestade
vento ventando vontades
serei semente vibrando ao sol

Almas das águas dos rios
borboletando no cio
do faz-de-conta que não tem fim

e ao me perder, criar limo
brotar canção, virar bicho.
Sei do desgosto de ser capim

O desandar das lagartas
sobre o azul de fastio
tanta saudade chovendo em mim

pelas goteiras da alma
sinto encharcar-me da calma
de quem sabe que trilha seguir.

Saudade é a luz quando escuro
o deslizar nobre e seguro
das cobras d' água no pantanal

bicho sem nem canseira
eis a saudade...certeira
ei-la, tocaia no meu quintal.
  
Se sabe a cruz, sabe a chaga
de quem conduz pela espada
de quem tem justo por não crer

na paz das almas marcadas
no chão das crias aladas
no que se passa antes de chover

Vem ver a noite emprenhada
a cor da estrela abortada
na marca-gosma das lesmas.

esse evangelho do lodo
vibra na parte e no todo
num pergaminho de pedras:

Que a chuva leve o que há de pior
que o vento traga o que há de melhor
que o fogo nos purifique
que a terra enfim frutifique
o amor.



sexta-feira, 4 de julho de 2014

Dos sonâmbulos









Richard Serra, out-of-round X, 1999

já pensou em não pensar ?
iluminar-se e iluminar.

acalma o lago frio e fundo do queixume
e traça novo rumo à travessia
tu sabes do silêncio que envolve a arma branca
e da peçonha-sangue do desprezo de um amante
ampara, pois, a asa fraturada do desejo
e nela deposita a frágil confiança
o vôo de ante-noite-orvalho-lua-cega
e suas criaturas febrifamintas e ciosas
nos redimirá em raio e gozo, estalo e estilo
na boca desdentada e mesmótona das manhãs.

já pensou em iluminar?
iluminar-se e não pensar 



A mãe gentil












O meu país navega em minhas veias
onde não há sinal de calmaria
no meu sangue esse país deságua
e no meu coração, por fim, naufraga

O meu país caminha em minhas veias
com suas vestes, rotas, maltrapilhas
esfomeado, no meu corpo, clama
e dos meus olhos salta e se derrama

Esse país que é tão meu, que é minhalma
que se confunde à dor desse meu peito
esse gigante, niño sonolento

me faz vestir o manto brasileiro
tecido em sangue, do melhor que havia,

en el tercer mundo, tropical sangria. 



sexta-feira, 20 de junho de 2014

Mensagem na garrafa











para Théo e Vincent, uma ilha

I

O mar aqui não é o mar
o mar são as pessoas
que me cercam
que conheço, desconheço
finjo não conhecer
que não lembro mais.
O mar são elas
e minha mensagem não tem destino CLARO
tem objetivo, tenta ter sentido
e o sabor refinado para raros paladares
A ilha que sou
não se vê como se reflete
Que dor essa de náufrago em mim !
Onde foi parar minha caravela
seus restos, vejo-os aqui, e como dói recompô-los
um cão numa aquarela Turner de manhã
um cão-eu, ilha-eu, náufrago-eu, tudo e nada
EU
eu-pessoa, eu-não-pessoa, eu-coisa
eu-coletivo, eu-todo, eu-caco
eu-só, eu-resto, eu-sobra
eu
eu-labirinto, eu-míope, eu-carne
eu-vasto, eu-torpe, eu-Eu.
  
II
As solidões, fiéis companheiras
- éguas lanhadas e sem dentes
  pisando meus desejos -
elas, a própria carta triste de Van Gogh
para Théo e para Deus.
Solidões - plural - várias, distintas
conheço-as pelo som dos cascos na asa sul
em meu pasto a procriar.
Pelas tesourinhas, pelo monumental eixo
daquilo que não tem eixo: minha vida.
Como é terrível estar acompanhado não estando.
Minha garrafa ainda vazia
aguarda a mensagem não escrita
mas tão claramente estampada nos meus olhos
olhos bucaneiros, olhos barba-roxa
olhos marginais de um mar revolto
olhar  pirata de um lago que paira no ar
O mar são eles e elas
a ilha que eu sou afunda lentamente.
a imagem da tormenta configura-se,
concretiza-se, cristaliza-se
eu-tufão, eu-tempestade, eu-tsunami.
Meu Deus, e o amor ?
essa substância estranha que permeia minha carne.
Será ele, o amor, minha mensagem
ou o medo entranhado, ele sim, majestoso e imponente,
significa o que de real existe em minhas praias privativas ?
Não sei de onde sou, onde estou
meu eu-arquipélago.
Não aprendi essa difícil geografia
não entendo seus mapas
não me adianta bússola
Estou perdido
e o mar de gente ameaça a plantação
tão duramente cultivada
nessa fértil ilha-eu.




segunda-feira, 16 de junho de 2014

Um segundo


















Ninguem te vê chorar
Ninguém te vê
Ninguém
Ninguém nos vê em desespero
Ninguém nos sabe em pele ou pêlo
Ninguém, ninguém nos vê
Nem nosso segredo
Ninguém vê

Não tenho medo ou dó de mim
Mas quero tanto me ver inteiro
Resgatar um menino verdadeiro
Que anos de história sepultou
Está lá esse menino
Sozinho, pelo canto de mim
No mais escuro buraco de mim
E só eu sei dos seus soluços

Ninguém me vê tão só
Tão triste
Profundamente triste e só
Tudo pode estar por um segundo
Posso estar por um segundo
Pode estar por um segundo
Um segundo é o tempo para mudar o mundo
Para morrer no mundo
Para morrer o mundo
Um segundo
Não mais que um segundo.

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Sagrado Impromptu













Creia, sem desespero, e desapegue-se...
Na escuridão há luzes, mesmo que não veja
Há calor no mais gélido dos caminhos
Mesmo que não lhe aqueça
Saiba, nem tudo que aparece sob o céu
se pode apreender com o mero olhar
o olfato nunca alcança a natureza do perfume
e suas mãos nunca saberão do sangue que corre sob a pele
ouvido algum escuta o gemido da estrela.
Há mistérios na manhã mais luminosa
E é ali que as verdades se multiplicam.
O verbo não exprime o cheiro do gosto da cor que arde no trovão
No mais, meu amigo, a língua de deus no horizonte
Sob a linha d’agua, lambendo as nossas certezas.

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Pajelança












Sou luz na aquarela
o brilho que se releva
revela-se na palidez de um tom pastel
Sou só, num mar de plena e densa solidão
meu navegar é lento
como o desfilar do vento
quisera sê-lo pleno
e vaguear o mundo
e penetrar o incenso
de outros cheiros e narizes
e dançar na relva sem receio
mergulhar no abismo sem ter medo
arriscar amar sem meios termos
Ah, como dói querer
e seguir sendo um poço de desejos.

Se pudesse, ah, se eu pudesse
certamente tornaria ao gran canal
como num filme antigo
e sentiria na pele o calor de outras línguas
mas sou apenas a luz de uma aquarela
o esquecido brilho de uma cor morta
e sigo só na doce experiência de estar vivo
saboreando quase todas as frutas
fumando quase todos os fumos
comendo quase todas as delícias
sorvendo quase todas as bebidas
quase todos os caminhos
quase todos os poemas
quase, sempre um quase
o quase de um quase
a me dizer que viver é mesmo um enorme quase
pois todo todo é um tédio absoluto
e assim sigo quase-vivo
quase-vivendo
quase-morto
um quase.


30 jun 2010


quarta-feira, 11 de junho de 2014

Messias

Nesses tempos escuros
sem pontes, mil muros
além do olhar soturno
que mais nos resta esperar?

Talvez um feto mudo
de um ventre qualquer, miúdo,
traga e apresente outro mundo,
o que habita o nosso sonhar.



terça-feira, 10 de junho de 2014

As Greias de Campina Grande

















Vamos devorar as ceguinhas de Campina Grande?
Beber sua bile, comer seu fígado
com nossos dentinhos brancos, sem cárie?
Vamos?
Mastigar as retinas das ceguinhas de Campina Grande?
Morder seu baço, lamber seu buço
e dar um naco pros nossos filhos com seus aparelhos coloridos e dentes perfeitos?
Vamos?
Digerir a voz desafinada das ceguinhas de Campina Grande
num palco em Salvador, São Paulo, Rio
sentados, de buchos cheios, melhores livros, roupas, vinhos e comidas no rabo?
Atirar no mar
Dar uma tapa em Maria, Poroca e Indaiá 
Vamos dar uma esmola pras ceguinhas de Campina Grande?
Jogar moedinhas pros meninos que tapam buracos nas estradas no interior da Bahia?
pros zumbis do crack na rodoviária de Brasília?
E nós no Land Rover, usado e pago a prestações...
Vamos?
Vamos fotografar as ceguinhas de Campina Grande para um pôster gigante?
emoldurá-lo e pendura-lo na sala de casa
A miséria fica linda na parede, vira arte nos museus
um Portinari e seus retirantes
as três ceguinhas de Campina Grande
nossa alma.
Vamos?
E depois dormiremos em paz, consciência leve
a caminho do céu dos burgueses filhos da puta que somos nós
com nossas máscaras, com nossas neuras, nossos desmantelos
Quero adorar as ceguinhas de Campina Grande
roubar seu olho e seu dente, afiar sua tesoura
comprar seu filme, seu disco, seu livro, seu copo descartável
como a descartabilidade de todas as ceguinhas devoradas
Eu escuto, eu vejo, eu falo