quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Geografia do corpo

Geografia do corpo

                                                                                   Sem título - Siron Franco
  
                                 
São tantos e tontos os mundos
no corpo de um só sujeito
que não tem modo, nem jeito
de eu não lhe perguntar:
quem descobriu sua ilha,
sua foz, seu continente?
quem bebeu, em sua nascente,
o líquido mais sagrado?
cada encontrado acidente,
cada vivido deserto.
todo rio, cada poente,
cada floresta intocada
em torno do seu umbigo.

são tantos os cantos do mundo
e tantos os mundos cantados
na geografia de um só sujeito
que não tem modo, nem jeito
de meu poema não cantar
quem se apossou dos seus sonhos?
quem descobriu seus desejos?
quem demarcou seus limites?
quem explorou os seus medos?

eu navego há tantos anos
que não guardo mais segredos
cada porto em mim se abre
cada nau em mim soçobra
e os resquícios dos naufrágios
vêm bater em minha porta
os baús todos lacrados
flutuando em minha pele
oceano-tez marcado
pelo tempo, intempéries
sou assim um mundo inteiro
de fragatas, quilhas, velas
todas elas navegando
e meu corpo é todas elas

somos todos tantos mundos
muitos deles não trillhados
esperando um terra-à-vista
e o assentamento de um marco
que não tem modo, nem jeito
de meu canto terminar
no fim de cada sujeito
há um outro mundo inteiro
e outro mundo e outro jeito
de a gente navegar.



segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Os velhinhos da Gamboa (Pequena tragédia carioca)

Os velhinhos da Gamboa
(Pequena tragédia carioca)                 

Dizem que a tristeza mata
mas se morre de alegria

vou contar-lhes uma história
aconteceu outro dia...

encontraram num domingo
os dois velhinhos dormindo

num carro abandonado
numa rua da Gamboa

não era sono de vivos
nem sonho, nem pesadelo

engraçado como a morte
é um sono sem retorno

os dois velhinhos no carro
e a manhã nascendo em volta

primeiro o viu um mendigo
sua presença estranhou.

um carro na rua suja
junto à casa abandonada.
o asfalto esburacado
como negra renda imunda

o lixo bordando a rua
com as cores de seus dejetos

passaram alguns soldados
de braços dados com putas

depois vieram uns meninos
que por lá se aventuravam

tentaram enxergar no carro
seu conteúdo escondido.

buliram na maçaneta
pensavam ganhar um troco.

no carro, dois corpos frios
sem vida, olhos fechados.

alguns ficaram com medo
correram dali em bando

alguém chamou a ambulância,
ligaram pro delegado

quiseram chamar um padre
um pai de santo e um pastor

e velas foram acesas
trouxeram um cobertor.
para aquecer corpos mortos?
perguntou um cobrador

que voltava do trabalho
e curioso ali ficou.

alguém rezava baixinho
outro cuspia de lado

havia um quê de respeito
aos velhos corpos gelados

engraçado como a morte
é um sono sem retorno

os dois velhinhos no carro
e a manhã nascendo em volta

logo chegaram peritos
policiais, viaturas.

era um barulho danado
tanto silêncio contido.

quem eram os tais defuntos
encontrados na Gamboa?

que dera neles morrer
sozinhos naquela rua?

ninguém ali sabe nada
é tudo um grande mistério
diziam ser suicídio
morte matada não era

não viram sinal de sangue
não viram furo de bala.

num carro preto, parado,
dois  velhinhos, sós, dormindo.

ela, nobreza e elegância
cabelos brancos cuidados

colar de perolas róseas
relíquia de um camafeu

havia ainda um perfume
que a noite não consumiu.

na mão esquerda a aliança
na direita, um lindo anel

ele num terno riscado
sob um chapéu Panamá

sapato em brilho impecável
e um impecável barbear

uma moldura grisalha
de lábios frios, sem vida.

ela, deitada em seu ombro
como uma pomba no ninho
engraçado como a morte
é um sono sem retorno

os dois velhinhos no carro
e a manhã nascendo em volta

quem eram os tais amantes
encontrados na Gamboa?

souberam logo depois
que eram ambos casados

com famílias diferentes
e segredos bem guardados

ele, com uma professora
ela, com um advogado.

por mais de quarenta anos
nas fotos sempre ligados.

dentre todos uma voz
que não quis se apresentar

disse que sempre se amaram
e se viam em segredo

netos e filhos surpresos
com vovô, com a vovozinha.

meu Deus, que coisa espantosa!
disseram seus conhecidos
esses pobres esconderam
um amor tão proibido.

amigos estupefatos
todos eles conhecidos

há anos se visitavam
eram dois casais amigos.

como puderam fazê-lo?
que lhes faltava no lar?

ah, que dor para os traídos!
o que os há de curar?

um julgamento velado
fez-se logo ali no carro.

seus corpos observados
sob o azul da Gamboa.

há quanto tempo se viam?
desde quando se encontravam?

ninguém saberá dizê-lo
melhor calar e enterrá-los

em cemitérios distintos
seus corpos bem separados.

ele no São João Batista
ela, Jardim da Saudade
este o castigo escolhido
os dois corpos em degredo

definitivamente sós
cada um para o seu lado.

a professora em silêncio
o advogado calado.

o que ninguém explicou
nem nunca vai entender

qual o motivo do riso
nos lábios dois dois selado?

havia felicidade
naquela expressão sem vida

um prazer absoluto
juntinhos, de mãos unidas

como se a eternidade
se resolvesse em segundos

e todos os males do mundo
naquele encontro cessassem.

ele, de olhos fechados
ela deitada em seu ombro.

engraçado como a morte
é um sono sem retorno

os dois velhinhos no carro
e a manhã nascendo em volta

numa rua, num domingo
dia bom de estar à toa.

a morte alegre estampada
nos velhinhos da Gamboa.







quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Poema maior




Poema maior

sob o prisma de Bandeira e Cabral




Quero cantar os passos matinais
de minha prole, de meus irmãos,
desses meus espelhos fraturados
- sou seu pai, seu filho, estilhaço -
louvar seus pés decididos, suas mãos
suas unhas com esmalte barato
copulando óleo e carvão
seus calos, rugas, flores murchas
seus olhares destemidamente apavorados
tão carentes e tão senhores de si
nessa manhã fria de novembro
saudar os rostos sérios, os bocejos,
o hálito de quem mastiga o mal dos dias
o cansaço estampado na expressão de sono
que invade meu caminho nesta epifania
sou eu naquele par de sujos tênis
naquela saia de brim desbotado
na farda de vigilantes e policiais
são minhas as costas onde se apóia aquela mochila
com livros, carnês e marmita fria
é meu o ombro que suporta o mundo, sim
pois assim deve ser
é minha a mão calejada que arrasta uma criança
é meu o estômago de quem não se alimentou nesta manhã
e as dores de quem veio em pé no coletivo lotado
no metrô, nos trens, nas vans, nas bicicletas
sou eu, eu que mal dormi
e corro atrasado para empacotar margarinas
repor mercadoria num supermercado
é minha a teta flácida na boca do menino
e é minha aquela boca ávida na teta flácida
eu quem tosse, espirra, fuma e cospe
carpindo um dia que parece não ter fim
neste seu começo
eu quem chuta a lata de cerveja na calçada
quem morre sozinho na periferia
quem sonha e quem se desespera
são meus os dentes cariados que sorriem
e que mastigam a média no bar da esquina
eu sou o outro que me olha e que me instiga...
Perdoa, poeta, mas não. Definitivamente, não.
Não são galos que compõem uma manhã
não, não são.
São homens, a urbana prole,
que tecem, em sua marcha, esta e todas as manhãs
com seus fios de esperança e desencanto
e seus gestos de homens costurando o dia
tecendo a História
nessa manhã fria de novembro,
com sua melancolia e bruma,
ao tecer um novo homem em mim.



Nos dentes:  https://soundcloud.com/l-o-almeida/poema-maior

O Desejo II

O desejo II (Dos provérbios da carne)


Fosse chama e não cheiro
evolando-se do chão sem viço
construindo arestas nas narinas
rasgando, roçando, fresta em festa
infenso a infausta sorte  
e então o sol, por sobre os sonhos,
viria à noite, intruso não oculto
sacudir os meus lençóis molhados
o visgo, o tato, o deslizar em gozo
ardendo em equinócios desconhecidos.

Ah, a aspereza da seda!


Antes, o silêncio sobre o desejo
a mudez do falo e das reentrâncias
quase uma língua de anjos
trombetas num céu de surdo-mudos
querubins enrodilhados em pecado
e lá, no fundo da tela, o azul profundo
o mais profundo dos azuis celestes
azul azul, daqueles de presépio e uniforme escolar
sustentando os raios desse sol intruso
que insiste em arder na minha pele
durante a noite, quando queimo, enquanto durmo.

Ah, a maciez dos arames farpados!





A invenção de Deus

A invenção de deus

              
       
E numa noite tremenda,
provavelmente com raios e trovões,
- talvez nem fosse noite
nem trovões ou raios houvesse -
inventou-se um deus para consolo.
e, por que certamente fazia frio,
criou-se um deus para conforto,
e, por que se tinha muito medo,
trouxeram um deus para esperança e,
por que havia muito ódio,
sacramentaram um deus para a barbárie.
mas eram todos eles o mesmo deus
aquele inventado num noite tremenda.
logo explicou-se tudo, justificou-se tudo
condenou-se toda a raça à danação sobre a terra
e os cordeiros ficaram mansos
apascentados pela grande invenção.
em seu nome ou sob suas ordens
assassinatos tornaram-se justos,
guerras santas, fuzilamentos da lei
apedrejamentos da ordem do sagrado.
sacrifícios em nome de um deus que,
em sua enorme sabedoria,
está com os vencedores. Sempre!
por isso, toda religião é praga,
é peste, prego, prato feito para fome antiga
defeito moral, desastre do humano,
fim da liberdade, cadeia e cruz
muleta metafísica para espíritos aleijados
emplastro para almas doentes
e toda crença é deformidade da razão
patologia etérea, metástase da ignorância.
numa noite enorme de raios e trovões
- que bem podia ser dia, sem raios ou trovões -
inventou-se um deus para o castigo
e, por achar-se pouca a dor, para a brutalidade
e logo marcaram a carne
com o ferrão da ordem divina
para regozijo do espírito
e o que era humano, tornou-se bestial
com anjos subindo e descendo
com suas asas e cascos fendidos
usando nossas vértebras como escada
e a partir desse remoto instante
cobriram-se de escuridão nossos olhos crédulos
e dentro de nós desabou uma noite tremenda
noite eterna e sem salvação
com relâmpagos e trovões que explodiram doridos,
inclementes.