segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Os velhinhos da Gamboa (Pequena tragédia carioca)

Os velhinhos da Gamboa
(Pequena tragédia carioca)                 

Dizem que a tristeza mata
mas se morre de alegria

vou contar-lhes uma história
aconteceu outro dia...

encontraram num domingo
os dois velhinhos dormindo

num carro abandonado
numa rua da Gamboa

não era sono de vivos
nem sonho, nem pesadelo

engraçado como a morte
é um sono sem retorno

os dois velhinhos no carro
e a manhã nascendo em volta

primeiro o viu um mendigo
sua presença estranhou.

um carro na rua suja
junto à casa abandonada.
o asfalto esburacado
como negra renda imunda

o lixo bordando a rua
com as cores de seus dejetos

passaram alguns soldados
de braços dados com putas

depois vieram uns meninos
que por lá se aventuravam

tentaram enxergar no carro
seu conteúdo escondido.

buliram na maçaneta
pensavam ganhar um troco.

no carro, dois corpos frios
sem vida, olhos fechados.

alguns ficaram com medo
correram dali em bando

alguém chamou a ambulância,
ligaram pro delegado

quiseram chamar um padre
um pai de santo e um pastor

e velas foram acesas
trouxeram um cobertor.
para aquecer corpos mortos?
perguntou um cobrador

que voltava do trabalho
e curioso ali ficou.

alguém rezava baixinho
outro cuspia de lado

havia um quê de respeito
aos velhos corpos gelados

engraçado como a morte
é um sono sem retorno

os dois velhinhos no carro
e a manhã nascendo em volta

logo chegaram peritos
policiais, viaturas.

era um barulho danado
tanto silêncio contido.

quem eram os tais defuntos
encontrados na Gamboa?

que dera neles morrer
sozinhos naquela rua?

ninguém ali sabe nada
é tudo um grande mistério
diziam ser suicídio
morte matada não era

não viram sinal de sangue
não viram furo de bala.

num carro preto, parado,
dois  velhinhos, sós, dormindo.

ela, nobreza e elegância
cabelos brancos cuidados

colar de perolas róseas
relíquia de um camafeu

havia ainda um perfume
que a noite não consumiu.

na mão esquerda a aliança
na direita, um lindo anel

ele num terno riscado
sob um chapéu Panamá

sapato em brilho impecável
e um impecável barbear

uma moldura grisalha
de lábios frios, sem vida.

ela, deitada em seu ombro
como uma pomba no ninho
engraçado como a morte
é um sono sem retorno

os dois velhinhos no carro
e a manhã nascendo em volta

quem eram os tais amantes
encontrados na Gamboa?

souberam logo depois
que eram ambos casados

com famílias diferentes
e segredos bem guardados

ele, com uma professora
ela, com um advogado.

por mais de quarenta anos
nas fotos sempre ligados.

dentre todos uma voz
que não quis se apresentar

disse que sempre se amaram
e se viam em segredo

netos e filhos surpresos
com vovô, com a vovozinha.

meu Deus, que coisa espantosa!
disseram seus conhecidos
esses pobres esconderam
um amor tão proibido.

amigos estupefatos
todos eles conhecidos

há anos se visitavam
eram dois casais amigos.

como puderam fazê-lo?
que lhes faltava no lar?

ah, que dor para os traídos!
o que os há de curar?

um julgamento velado
fez-se logo ali no carro.

seus corpos observados
sob o azul da Gamboa.

há quanto tempo se viam?
desde quando se encontravam?

ninguém saberá dizê-lo
melhor calar e enterrá-los

em cemitérios distintos
seus corpos bem separados.

ele no São João Batista
ela, Jardim da Saudade
este o castigo escolhido
os dois corpos em degredo

definitivamente sós
cada um para o seu lado.

a professora em silêncio
o advogado calado.

o que ninguém explicou
nem nunca vai entender

qual o motivo do riso
nos lábios dois dois selado?

havia felicidade
naquela expressão sem vida

um prazer absoluto
juntinhos, de mãos unidas

como se a eternidade
se resolvesse em segundos

e todos os males do mundo
naquele encontro cessassem.

ele, de olhos fechados
ela deitada em seu ombro.

engraçado como a morte
é um sono sem retorno

os dois velhinhos no carro
e a manhã nascendo em volta

numa rua, num domingo
dia bom de estar à toa.

a morte alegre estampada
nos velhinhos da Gamboa.







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