quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Poema maior




Poema maior

sob o prisma de Bandeira e Cabral




Quero cantar os passos matinais
de minha prole, de meus irmãos,
desses meus espelhos fraturados
- sou seu pai, seu filho, estilhaço -
louvar seus pés decididos, suas mãos
suas unhas com esmalte barato
copulando óleo e carvão
seus calos, rugas, flores murchas
seus olhares destemidamente apavorados
tão carentes e tão senhores de si
nessa manhã fria de novembro
saudar os rostos sérios, os bocejos,
o hálito de quem mastiga o mal dos dias
o cansaço estampado na expressão de sono
que invade meu caminho nesta epifania
sou eu naquele par de sujos tênis
naquela saia de brim desbotado
na farda de vigilantes e policiais
são minhas as costas onde se apóia aquela mochila
com livros, carnês e marmita fria
é meu o ombro que suporta o mundo, sim
pois assim deve ser
é minha a mão calejada que arrasta uma criança
é meu o estômago de quem não se alimentou nesta manhã
e as dores de quem veio em pé no coletivo lotado
no metrô, nos trens, nas vans, nas bicicletas
sou eu, eu que mal dormi
e corro atrasado para empacotar margarinas
repor mercadoria num supermercado
é minha a teta flácida na boca do menino
e é minha aquela boca ávida na teta flácida
eu quem tosse, espirra, fuma e cospe
carpindo um dia que parece não ter fim
neste seu começo
eu quem chuta a lata de cerveja na calçada
quem morre sozinho na periferia
quem sonha e quem se desespera
são meus os dentes cariados que sorriem
e que mastigam a média no bar da esquina
eu sou o outro que me olha e que me instiga...
Perdoa, poeta, mas não. Definitivamente, não.
Não são galos que compõem uma manhã
não, não são.
São homens, a urbana prole,
que tecem, em sua marcha, esta e todas as manhãs
com seus fios de esperança e desencanto
e seus gestos de homens costurando o dia
tecendo a História
nessa manhã fria de novembro,
com sua melancolia e bruma,
ao tecer um novo homem em mim.



Nos dentes:  https://soundcloud.com/l-o-almeida/poema-maior

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