Para meu pai
Saiba
- disse-me o sem-voz - nem tudo é mansidão.
Quando
olhares para
a boca de um
homem velho,
pensa quantos lábios
deve ter tocado,
quantas
línguas sugado,
quantos
sabores provado.
Quando
fitares a boca de um homem velho,
pensa,
jovem leitor, na senectude daquela língua
e nas
ordens que terá decretado.
Quantas
palavras mastigado? Quantos versos lambido?
Que
nãos... a quantos ferido?
Que
sins... a quantos acariciado?
nos substantivos gelados e lânguidos adjetivos,
nos silêncios engolidos e gritos
vomitados.
flor murcha decadente, lábios enrugados
como pétalas costuradas em
linho gris,
pensa nos sorrisos que brotaram em tempos
viçosos , imprecisos,
em campos da alma fértil e fresca
banhados
por raríssimos orvalhos
que o tempo fez questão de eliminar.
dobrando
as flores da vida
desejada,
anunciando
a chuva definitiva
que
levaria a alma-seiva para outras safras .
Quando
olhares a boca de um homem velho
e dela
ouvires “Filho, o que te aflige?”
Responde,
com calma, que teu olhar investiga
o
tempo, o tempo, o tempo, o tempo.
E se
ela tornar a perguntar a ti,
na
teimosia típica de um velho,
“Filho,
o que te assusta?”
Olha
firme para aquela boca, sem medo,
e não
deixe que perceba
que
nela vês os corpos dilacerados de teus irmãos
E os
fiapos de carnes presos naquelas presas.
Beija
aquela boca, filho,
é a
tua boca repousando no amanhã.
* Saturno devorando um filho, Francisco Goya (1746 – 1828)
** Música: Lucas, Marco Antonio Araújo.
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