segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Elegia a Saturno


                     








       Para meu pai





Saiba - disse-me o sem-voz - nem tudo é mansidão. 
Quando olhares para a boca de um homem velho,
pensa quantos lábios deve ter tocado,
quantas línguas sugado,
quantos sabores provado.
Pensa nos dentes dessa boca de homem velho:
Quanto terá mastigado?
Que carnes, que frutos triturado?
Que mamilos e tetas mordiscado?

Quando fitares a boca de um homem velho,
pensa, jovem leitor, na senectude daquela língua
e nas ordens que terá decretado.
Quantas palavras mastigado? Quantos versos lambido?
Que nãos... a quantos ferido?
Que sins... a quantos acariciado?
Pensa nos verbos no imperativo,
nos substantivos gelados e lânguidos adjetivos,
nos silêncios engolidos e gritos vomitados.

Quando cravares teu olhar na boca de um homem velho,
flor murcha decadente, lábios enrugados
como pétalas costuradas em linho gris,
pensa nos sorrisos que brotaram em tempos viçosos, imprecisos,
em campos da alma fértil e fresca
banhados por raríssimos orvalhos
que o tempo fez questão de eliminar.
Pensa no hálito-brisa que então partia,
dobrando as flores da vida desejada,
anunciando a chuva definitiva
que levaria a alma-seiva para outras safras.

Quando olhares a boca de um homem velho
e dela ouvires “Filho, o que te aflige?”
Responde, com calma, que teu olhar investiga
o tempo, o tempo, o tempo, o tempo.
E se ela tornar a perguntar a ti,
na teimosia típica de um velho,
“Filho, o que te assusta?”
Olha firme para aquela boca, sem medo,
e não deixe que perceba
que nela vês os corpos dilacerados de teus irmãos
E os fiapos de carnes presos naquelas presas.
Beija aquela boca, filho,
é a tua boca repousando no amanhã.









Saturno devorando um filho, Francisco Goya (1746 – 1828)
** Música: Lucas, Marco Antonio Araújo.

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