sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Vertigo















ou
a poesia é o piercing cravado no umbigo do sonho


sonhei comigo e o migo era real
no sonho, o eu sonhado não sonhava
rabiscava a giz o meu retrato
e era real meu rosto retratado

no flash de um momento-esparque
acordava o eu real grafado a giz
e apagava o migo-eu que o desenhara
que era aquele com quem eu sonhava

sobrava-me, em sonho, o desenhado
Lázaro que da névoa-nódoa me acenava
dizendo-me que o real era matéria
que o sonho, ao ser sonhado, eliminava.


quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Antinarciso















No horror, humanidade
No medonho, carne e sangue
No bizarro, mulher e homem
No terror, criança velho

No pavormãos e pernas
No pior, olhos de gente
No que assusta, língua humana
No que espanta, linguagem

No desespero, há arte e ócio
Na barbárie, cultura e vício
No que maltrata, prece e cio
No que machuca, duro ofício

Não ver nesse universo a sombra oculta,
que assombra e apavora o humano tato
nem sentir no mal e mau nossa labuta
é prolongar a peste e o beijo amargo

de nossa verdadeira natureza
com a falsa natureza em que vivemos,
pois nesse enlace lúbrico nos vemos,
de verdade e falsidade, seres plenos


quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Pornopoética












Boucher, 1740




Sangue e sêmen, nojo e gozo, paranóia e orgasmo, são elementos recorrentes na história da arte. Sexo e violência constituem um par constante nas representações artísticas, notadamente nas artes plásticas e na música. A pornografia que invade a literatura moderna, notadamente a partir dos libertinos franceses do século XVIII, tem seu lugar em língua portuguesa nas cantigas medievais de escárnio e maldizer (séculos XV e XVI).
A última flor do Lácio preserva uma vasta tradição de erotismo em versos que vão de Bocage a Glauco Matoso, passando por Gregório de Matos Guerra, no barroco colonial, Bernardo Guimarães, em nosso Romantismo, e Manuel Bandeira, em nosso modernismo. Apesar dessa bagagem e caminho, a poesia erótica sempre foi vista como algo menor, nada nobre, pitoresca. Às obras eróticas sempre esteve reservado um lugar de sorriso e desprezo, textos com fumos de extravagância e irreverência destinados ao olvido e piadas de salão. Não foi por outro motivo que um poeta “sério” como Carlos Drummond de Andrade solicitou que se publicasse apenas após a sua morte seu delicioso volume de poemas eróticos “O amor natural”.
Outro caso interessante dentre os grandes poetas brasileiros é o de Manuel Bandeira, que, em 1962, escreve “A cópula”, poema inédito até 1986, quando a revista Bric a Brac, de Brasília, após minuciosa pesquisa de estilo e grafológica, concluiu pela confirmação da autoria do texto (o poema original, manuscrito, foi enviado pelo poeta a Pedro Nava, como presente, e foi encontrado em 1986, no acervo de obras raras da biblioteca da UnB, num exemplar de Parnaso Bocagiano-Poesias Eróticas e Burlescas e Satyricas, que o mesmo Bandeira havia presenteado, em 1945, a Pedro Nava). Confirmada a autoria, a extinta Bric a Brac, no seu número II, divulga o poema, concluindo que, a partir de então, Manoel Bandeira, que havia sido simbolista, modernista e concretista, era agora também um bocagista.

A cópula

Depois de lhe beijar meticulosamente
O cu, que é uma pimenta, a boceta, que é um doce
O moço exibe à moça a bagagem que trouxe:
Culhões e membro, um membro enorme e turgescente.

Ela toma-o na boca e morde-o, incontinenti
Não pode ele conter-se e, de um jacto, esporrou-se
Não desarmou porém. Antes, mais rijo, alterou-se
E fodeu-a. Ela geme, ela peida, ela sente.

Que vai morrer: “Eu morro! Ai não queres que eu morra?!”
Grita para o rapaz, que aceso como um Diabo,
Arde em cio e tesão na amorosa gangorra.

E titilando-a nos mamilos e no rabo
(que depois irá ter sua ração de porra)
Lhe enfia cono a dentro o mangalho até o cabo.


Há  preconceito embutido na idéia de que toda poesia erótica é uma obra menor e, portanto, foge ao estatuto de “alta poesia”. Além disso, ao contrário da prosa e das artes plásticas, um “eu lírico” que fala de desejo, inegavelmente, expõe-se mais que um personagem de ficção que o faça. O poeta que finge sua libido, na verdade, parafraseando Fernando Pessoa, finge o “que deveras sente”. Uma pérola desse tipo de poesia que beira a pornografia é o soneto, cometido a quatro mãos, de Verlaine e Rimbaud:


Soneto do olho do cu (trad. José Miguel Wisnick)
Paul Verlaine/Arthur Rimbaud

Obscuro e franzido como um cravo roxo,
Humilde ele respira escondido na espuma,
Úmido ainda do amor que pelas curvas suaves
Dos glúteos brancos desce à orla de sua auréola.

Uns filamentos como lágrimas de leite,
Choraram ao vento inclemente que os expulsa,
Passando por calhaus de uma argila vermelha,
Para escorrer por fim ao longo das encostas.

Muita vez minha boca uniu-se a esta ventosa,
Sem poder ter o coito material, minha alma
Fez dele um lacrimário, um ninho de soluços.

Ele é a tonta azeitona, a flauta carinhosa,
Tubo por onde desce a divina pralina,
Canaã feminino que eclode na umidade. 

É, no mínimo, chocante ao bom gosto perceber que um cu possa ser objeto de boa poesia. Tal premissa parte da profissão de fé de um grande poeta como Manuel de Barros, para quem todas as coisas, principalmente as desprezíveis e desprezadas, são matéria de poesia. Por que não um cu? Há alguns anos fiz um pequeno poema pornográfico. À primeira vista, ou leitura, não se apresenta como tal, apesar de um dos versos ser um convite explícito ao sexo oral. Digo que não se apresenta como tal devido à roupagem sofisticada do vocabulário e da estrutura das frases. O ornamento cobrindo a podridão do ato. Não que o sexo oral, em si, seja abjeto. Longe disso. O poema trata de abuso infantil, de pedofilia, de caso real que me inspirou às imagens do poema. Ei-lo:

O Círio (Dos provérbios da carne)


Tua mão, carícia e calosidade
do trabalho de amar em sacrifício
apara as pontas, puta, parte, aspira
aponta para ti a claridade
põe um pouco de delícia nesse ofício
no santo sacerdócio, edulcora o ato
ajoelha, fecha os olhos, une teus cílios
acólito meu, chupa o meu pau
que é tua redenção, que é teu vício
eis o mistério da fé dos lascivos!


terça-feira, 28 de janeiro de 2014

O RIo manso





Paulo Klee, The Goldfish (1925)






Era tua a mão que me colhia quando flor,
abrindo as pétalas para o sol, me via
Ah, meu finado amor!

Tua a mão que me acolhia quando em dor
me abria em prantos para a amara via
Ah, meu finado amor!

Teus os olhos que apontavam as caves
na noite escura quando não se via
nada além das sombras que me perseguiam
Ah, meu finado amor!

Teu o braço forte que me protegia.
Era tua a língua que eu tanto sorvia
que me alimentava, que me consumia
Ah, meu finado amor!

Teu o peito arfante que se apresentava
para meu repouso e onde me aquecia.
Ah, meu finado amor!

Era tudo teu como só teu me via
e hoje nada disso mais tem serventia,
pois são tuas as mãos que me fecharam a porta

quando eu mais te amava e mais te queria


segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Entrevista com o poeta Ferreira Gullar




Na manhã chuvosa de 21 de janeiro de 2013, após contato por telefone, o poeta me recebeu em seu apartamento em Copacabana. Havia lhe dito que estávamos publicando, eu e o poeta Paco Cac, uma revista de Poesia em Brasilia, a Z – Revista de poesia, e que gostaria de entrevistá-lo. Esclareci que a revista, em seu terceiro número, contaria com uma entrevista que eu havia feito com poeta Armando Freitas Filho e que o queríamos para a revista de número 4. Na verdade, havia encaminhado algumas questões por e-mail, mas ele julgou melhor conversarmos pessoalmente e sugeriu um bate-papo em sua residência no Rio de Janeiro. Por conta de uma fatalidade, a morte de meu amigo Paco Cac, os número 3 e 4 da Revista Z nunca vieram a público, por essa razão, agora, decorrido todo esse tempo, achei interessante publicar a entrevista com o autor do Poema sujo


Leonardo Almeida Filho: O senhor estreia na literatura com “Um pouco acima do chão”, em 1949. Parece-me que é um livro que o senhor não gosta muito. É verdade?

Ferreira Gullar: O Antonio Carlos Secchin, que é professor de literatura, poeta, e foi a pessoa que organizou a minha obra para a Nova Aguilar, fez questão de colocar esse meu primeiro livro como anexo no volume porque, argumentação dele, ele, como critico literário, estudioso de literatura, pra nós é fundamental conhecer isso. Pra entender o processo poético do autor, para o crítico – o leitor comum pode não se interessar por isso – mas para o crítico é importante, então ele me convenceu a pôr na obra do volume da Aguilar, como anexo, esse livro. Eu entendi perfeitamente. Compreende? Por que a minha questão realmente é de qualidade, eu não vou assinar embaixo de uma coisa que eu ache que não tenha a qualidade que eu exijo.

LAF: O Senhor é perfeccionista?

FG: Não, não. Eu não tenho essa obsessão não.  Eu, quando faço o poema, no processo de fazer eu sou extremamente exigente até concluí-lo, quer dizer, eu não deixo...não dou por acabada uma coisa que não está acabada. Então, eu levo, às vezes, meses fazendo o poema, está pronto, aparentemente, mas eu fico..volto, retorno, releio, corrijo até eu achar que está pronto. Aí eu não mexo mais. Tá pronto, tá pronto. Eu não tenho a pretensão de realizar obras-primas perfeitas. Minha visão de mundo e da vida é outra. Eu não acho que as coisas sejam assim. Sabe? Não vou me obsecar pra querer chegar a uma perfeição tal que não existe. Entende? Então eu vou até onde eu considero razoável aquilo. Está pronto, tá pronto, não vou ficar...eu não sou Deus pra fazer a perfeição das perfeições. Não tenho esse tipo de pretensão não.

LAF: Me lembro do Mario de Andrade no “Prefácio interessantíssimo” quando ele fala que toda perfeição é morte na arte.

FG: Se se torna obsessão, realmente é uma coisa que, veja bem, a obra de arte, o poema, é o resultado de um jogo de probabilidades. Você entende? Eu tenho uma página em branco e eu não sei o que eu vou escrever. Eu tenho uma ideia: Bom, eu vou escrever um poema sobre o cheiro do jasmim no jardim. Bom, tudo bem, eu tive essa experiência...mas isso é uma vaga necessidade, uma vaga vontade, mas eu não sei o que eu vou escrever, o poema não existe...ainda. Então eu não sei o que vou escrever, então a página em branco... tudo pode acontecer ali.

LAF: Tudo é possível.

FG: Tudo é possível. Quando eu escrevo a primeira palavra, eu reduzo a possibilidade. Agora há menos possibilidades, porque começou algo que limita a probabilidade, então há menos acaso agora. Então a segunda palavra, a terceira, daqui a pouco você já está na metade do poema e a partir daí tem menos acaso. Agora, o que já existe, condiciona o que vai acontecer daí pra frente. Então vai virando necessidade aquilo que era fortuito. Pode ser diferente, compreende? Não é essencialmente diferente, mas ele pode ser, sob vários aspectos, diferente.

LAF: Outra coisa, outro caminho?

FG: Não, ele pode ser o mesmo caminho, mas só que a forma dele não tem que ser exatamente igual por que aquilo ali é um jogo de probabilidades. Eu costumo dizer, “A Divina comédia” poderia não ter sido escrita, bastava o Dante ter morrido com quinze anos e não haveria “Divina Comédia”. Tá certo?  Segundo: podia ter sido escrita um pouco diferente do que está ali, devido às circunstâncias da vida porque é assim que as coisas acontecem. Não há um Deus que determine o que tem que ser feito, que é fatal...não existe isso. Eu tenho uma experiência de um poema que eu escrevi pouco antes de eu ir pro exílio, eu escrevi o poema e quando eu cheguei em Moscou, terminada a viagem, onde eu ia ficar, eu procurei o poema na maleta e tinha perdido. Aí eu falei: Bom, eu vou escrever de novo, que eu não vou perder esse poema. Aí eu escrevi poema de novo. Quando eu voltei do exílio, anos depois, eu achei o poema, o primeiro. Era diferente do segundo.

LAF: Os versos, forma, tudo?

FG: Sim. É o mesmo tema, falo as mesmas coisas, verso as mesmas coisas, diz coisas parecidas, mas o segundo diz mais coisas e é melhor que o primeiro.

LAF: É um processo heraclitiano. Não é mais o mesmo rio, né? O que o senhor acha da psicanálise?

FG: É uma teoria que tem alguns fundamentos, tem alguma coisa de verdade, mas como tudo que o ser humano faz não é a verdade absoluta. Tem coisas ali que são pertinentes, por que Freud era um homem inteligente, um homem que procurava entender a cabeça humana, a mente humana, tem verdadeiramente isso, mas, como tudo, tem lá os seus equívocos. Coisas que a teoria mesmo leva o cara a inventar e que não existem. Ele é um homem inteligente, ele contribuiu pra levantar uma série de questões, eu não tenho dúvidas. O mundo é inventado, a vida é inventada, não pode achar que tal coisa é definitiva e que isso e nem isso...as coisas não são assim não, não são assim. O mundo é inventado. Se Freud não tivesse nascido, talvez não houvesse a psicanálise e essas questões de inconsciente.

LAF: E Deus?

FG: Se Deus explica tudo, então acabou. Se é Deus, o destino, então tudo está resolvido, a existência do mundo e todas as perguntas estão respondidas mas eu, que não acredito, eu acho que não é assim.

LAF: O Senhor acredita em Marx?Só pra lhe provocar.

FG: Que Marx, cara. Você não vê que ultimamente estou sendo acusado de anti-comunista, porra.

LAF: É mesmo? Eu não vi isso não.

FG: Na internet aí que falam, eu não vejo não. Eu hoje faço a crítica de Marx, pois eu acho que Karl Marx deu uma contribuição muito grande à luta pelos direitos dos trabalhadores, a partir do momento em que ele publica o Manifesto Comunista, de 1848, a luta contra o capitalismo selvagem do século XIX, que era realmente uma indignidade. Uma ignomínia. As pessoas trabalhavam até morrer, não tinha aposentadoria, não tinham direito algum. Eles tiravam crianças do orfanato com sete anos de idade e botavam pra trabalhar 12, 15 horas por dia, e morriam de tuberculose dentro das fábricas. Quer dizer, então ele se revoltou contra isso, como homem generoso, ilustre que ele era, solidário, e encabeçou junto com outros um movimento que mudou essa relação. Hoje o trabalhador tem uma quantidade de direitos graças a essa luta. Isso é verdade. Mudou o mundo. Mudou a relação Capital Trabalho. Mudou. Isso é uma verdade, agora quando ele diz que só trabalhador produz riqueza e que o patrão só explora, é mentira. É mentira. O empresário é um intelectual que cria empresas em vez de criar romances. Ele é um intelectual. Eu conheço alguns empresários, um dos meus maiores amigos é um empresário, que é uma pessoa altamente intelectualizada. Toda religião acha que tem a verdade e o comunismo virou uma espécie de religião, tanto que os caras que acreditam nisso eles não tem coragem de romper, eu sou um dos poucos que tiveram coragem de dizer: Acreditei, errei, estava errado e tal. Eu fui do partido. Preso, torturado, exilado, em função disso, mas veja bem, ser a favor da sociedade justa é louvável, então todo cara que entrou pro Partido merece o reconhecimento de que era um cara que queria uma sociedade melhor. Está entendendo? O fato de ele ter errado não faz dele um bandido ou culpado de nada. Ele estava na melhor das intenções. Ele era um cara generoso, então só tem que entender que não deu certo. Apesar da boa intenção e apesar das muitas conquistas, não deu certo. Se você vai a Cuba você vê aquilo, é lamentável. Veja por exemplo: Augusto Frederico Schmidt. Um poeta e era empresário, velho. E era um bom poeta.

LAF: Sobre militância, engajamento. O Senhor acha que um poeta engajado corre o risco de ser um poeta menor?

FG: Se ele colocar a preocupação política acima da preocupação estética ele será um poeta menor.

LAF: Por que ele faz concessões...

FG: Não, por isso não. Se eu vou fazer teatro, eu tenho que prioritariamente fazer teatro. Eu posso usar, como Brecht usou o teatro, para divulgar as minhas posições políticas. Mas eu tenho que me preocupar, antes de mais nada, é em fazer uma boa peça. A prioridade é a qualidade estética, que eu posso usar para isso ou para aquilo. Para cantar o amor ou para pregar a subersão. Seja pro que for, agora...tem que ser teatro. Então a preocupação primeira é a estética e o grande mal do poeta engajado, de muitos poetas engajados, é que o cara tende a botar a preocupação política à frente da preocupação estética e aí faz besteira. O Drummond, por exemplo, não fez isso. Os poemas políticos do Drummond têm a qualidade do poeta por que ele nunca fez isso. Ele não fez isso de botar a coisa política na frente de tudo. Ele nunca fez. O João Cabral também.


LAF: O Graciliano Ramos...

FG: O Graciliano. Porque que era um grande romancista? Porque nunca fez isso. Agora o cara que fez sumiu, não teve expressão porque ficou fazendo, na verdade, demagogia.

LAF: Panfleto.

FG: Panfleto, é.

LAF: Porque nós brasileiros ainda não ganhamos o Nobel de Literatura?

FG: Uma das razões, pode ter outras, mas uma das razões é que a língua portuguesa, quer dizer, a vasta maioria dos intelectuais da Europa e dos intelectuais da Suécia não falam português, não leem português. O Português não pode se comparar com uma língua como o Francês ou o Espanhol, que multidões falam. Infelizmente, então isso fez com que...porque Fernando Pessoa não ganhou o prêmio Nobel? Um poeta que merecia ganhar. O Carlos Drummond de Andrade não merecia ganhar? O João Guimarães Rosa não merecia? O Graciliano? Mas não ganharam. Eu acho que, basicamente, é por causa da língua. A principal dificuldade vem daí. Agora o Saramago ganhou porque há outro fator que influi no Prêmio Nobel, que é a questão política e ideológica. Então, o fato do cara se destacar na luta política ou  por isso ou aquilo também pode influir na decisão do júri. E o Saramago, que já tinha sido candidato várias vezes, ele ganhou quando ele publicou aquele livro que o Vaticano proibiu.

LAF: O evangelho segundo Jesus Cristo.

FG: Sim, isso mesmo. Como aquilo representava, além da boa literatura, uma luta ideológica, uma luta por valores fundamentais, importantes, humanistas e tal, então isso contribuiu também para o prêmio.

LAF: Se o senhor fosse o cara a indicar o ganhador do Nobel. Quem, no Brasil, o senhor acha que deveria ganhar o prêmio?

FG: Eu acho que Drummond mereceria. Um poeta de muita qualidade, cara. Um dos poetas maiores aí, que já houve em qualquer língua.

LAF: Conversando com o poeta Armando Freitas Filho, comentei que achava que a poesia no Brasil era coisa de confraria. Ele completou: É a confraria dos ferozes. Como o senhor vê o mercado de poesia no Brasil?

FG: Se você for comparar o mercado de poesia com o romance...

LAF: Auto-ajuda...

FG: Auto-ajuda não vou nem falar. É claro que o número de pessoas que consome poesia é reduzido, não é o mesmo que consome romance ou outros tipos de literatura,mas isso não quer dizer nada, isso não tem grande importância, o que importa não é a quantidade, o que importa é a qualidade do leitor. Não adianta você vender milhões de livros e o seu livro ser de segunda categoria, você fazer uma literatura de segunda categoria, entende? Vou dar um exemplo. Na correspondência de Cezane há uma menção há um cara que é quem mais vende livro hoje (na época de Cezane) na França. O último romance que ele publicou vendeu 35 mil exemplares. Ele fala isso na carta. Aí eu pensei: Nessa mesma época, um pouco antes, Baudelaire tinha publicado “As flores do mal”. Uma ediçãozinho que pode ter tido o que? Trezentos exemplares. E ainda foi processado pela justiça por atentado ao pudor. Então, os anos se passaram. Esse cara, a quem o Cezanne se refere na carta, niguém sabe quem é. Mas o livrinho do Baudelaiere, “As flores do mal”, já tirou, depois disso, milhões de exemplares. É um Best seller “As flores do mal”, cara. Não é o livro do cara. O Best seller é “As flores do mal”.

LAF: A grande ironia da história...

FG: É claro. Por que é a qualidade que mantém as coisas. O Povo carrega a obra literária no colo. É ele. Não adianta um amigo ficar te elogiando. Pode até ser bom pra tua vaidade, mas se não tiver qualidade, não adianta. Aquela geração de 45 inteira, cadê? Sumiu. Porque? Eles eram donos de todos os suplementos na época, revistas literárias...cadê eles? Por que não tem qualidade. Ficou João Cabral, que tem qualidade.

LAF: E o Ledo Ivo?

FG: Também. São os dois que ficaram. E os outros sumiram porque não tinham qualidade. Não adianta, cara, compreende? A geração do Drummond. Quantos tinham? Sobraram Drummond, Murilo e Jorge de Lima. Havia dezenas de poetas na mesma época. Então a qualidade é que é a coisa. E isso porque isso é que faz a permanência.

LAF: A ditadura prendeu diversos artistas, dentre eles Gil e Caetano. Como você atravessou os anos de chumbo?

FG: Como eles eram irreverentes, aproveitaram para prender os caras. No caso deles não era a coisa política. Outros foram presos por razões políticas.

LAF: O senhor chegou a ser torturado?

FG: Nessa época não, mas depois quando eu voltei do exílio. Eu informei, pedi ao Villas Boas Correia, que era meu colega no Estadão, na sucursal do Rio, mandei uma carta pra ele pedindo a ele que informasse ao Comandante do I Exército, o Ministro da Justiça, a ABI que eu ia voltar. Porque que eu fiz isso? Para eu não voltar anonimamente e ser sequestrado, como eles estavam fazendo com as pessoas. Então eu mandei e pedi que dessem nota no jornal dizendo que eu ia chegar, pra que eu chegasse publicamente. Então, quando eu cheguei, estava lá no aeroporto uma turma de amigos, todos, era Glauber Rocha, era Zuenir, era todo mundo lá, então eles não puderam me prender quando eu cheguei. Isso é 77.Então eles não puderam me prender por isso. Porque seria um escândalo, estava a imprensa, estava todo mundo lá. No dia seguinte eles me prenderam. 

sábado, 25 de janeiro de 2014

Eu sem Platero

Por la quadra en silencio, encendiéndose cada vez que pasaba por el rayo de sol de la ventanilla, revolaba una bella mariposa de tres colores...
                  La muerte, Platero y yo, Juan Ramón Jiménez



A pele dessa manhã
transpira a névoa de antigos orvalhos
e a luz se abre em sonho e em bruma...
Oh, Brahma!

eis que um novo dia repousa
como pluma de pavão caindo leve sobre a terra úmida
na face fresca desse instante único...
Ah, Brahma!

evola-se o espírito de um deus noturno
que persiste, ínfimo, no perfume do capim molhado –
a franja verde que emoldura a face de outro deus, o sol
com seu visgo quente penetra a carne do mundo
se apossa da manhã
e uma mariposa tricolor saltita no ar quente
abençoando a minha solidão contemplativa.


quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Um albatroz em meu pescoço (Epitáfio)


This soul hath been
Alone on a wide wide sea:
So lonely’twas, that God himself
Scarce seemed there to be.
S.T.Coleridge

Para Dona Isabel.


Nunca quis o Mal
o anjo belo e luminoso a quebrar correntes
tampouco desejei o Bem
e sua legião de demônios, fogueiras e masmorras.

No fundo esperei topar um riso
e, nesse riso, encontrar meu riso
e ser feliz.

Sempre fui mau e bom
esse ajuntamento de tendões e sentimentos
filho do carbono e do afrodisíaco
entre o céu e a danação.



Nunca aspirei ao Poder
tronos e faixas e delírios e despojos
nem almejei a Glória
essa mulher de falsos dentes e sorrisos

No fundo, sonhei um mágico espelho
onde gostava do que via
e era feliz

Sempre, bom e mau
esse ambulante sonho entre cartilagens
filho da vontade e do desejo
entre o Inferno e a redenção


Nos dentes: https://soundcloud.com/l-o-almeida/um-albatroz-em-meu-pesco-o

Um amor




                                                  Siron Franco, O Aliado, 1978

Deve haver alguém pensando em mim neste momento
- mesmo sem me saber
esse alguém me ama e me deseja
agora, neste exato momento -
um amor invisível.
Um amor que suponho e me supõe
talvez num café, fumando um cigarro,
numa varanda, molhando uma orquídea púrpura
num gramado, brincando com um cão tão vira-lata quanto meu coração
quem sabe num cinema ou num vagão de metrô
talvez em casa, sozinho, pensando em mim sem me saber, mas me pressentir
olhar perdido na vidraça que o protege da chuva que cai
- estará chovendo em meu amor? -
será noite? manhã com ventos? tarde de sol?
Em que madrugada está o meu amor neste momento?
Sei que pensa em mim e me desenha,
me projeta, me pressente, me introjeta
sim, ele existe e me deseja, 
neste exato momento em que sou rascunho
esboço frágil de seu desejo
- e nem me vê ou viu! -
deve haver um amor para mim
talvez num mercado, numa livraria folheando Shakespeare
numa casa iluminada de um bairro simples
ou na escuridão silente de um quarto 
quem sabe na poltrona de um avião
no banco de um carro, com os filhos, em silêncio
pensando em mim enquanto espera o sinal abrir
um amor que me sente e sabe também que eu existo
exatamente como sei que ele existe
e o sinto em algum lugar do mundo
talvez bebendo vinho tinto e seco
ou um suco de mangaba natural
sujando o copo com o seu batom vermelho
roendo as unhas, limpando as mãos num avental
ou mordendo o lábio, enquanto me adivinha
e me anseia, eu sei, eu sinto que esse amor me devora.
Ah, doce deus dos solitários
deve haver esse alguém que me espera
e me procura
como eu
o espero e o procuro
e a grande tragédia disso tudo é que nada
- absolutamente nada -
garante que nos encontremos algum dia.






segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Dos provérbios da carne

O Desejo (Dos provérbios da carne)

                                                                          Picasso


O desejo é algo assim como as saúvas
que vêm numa marcha sempre certa
pelo jardim antes tranqüilo
marchando,
marcando o tempo
sob uma noite escura e sem testemunhas
num tiquetaquear de minúsculas patas
barulhentas, decididas.
O desejo é algo assim como as saúvas
que, famintas, sempre vêm
e passam, como a morte, uma-a-uma
e sobem o tronco estático, uma-a-uma
e cortam suas folhas, sem perdão, uma-a-uma
e vão-se, enfim, uma-a-uma
a outros verdes troncos,
torná-los nada e nulos
corroendo, corroendo, corroendo
e eu, torto tronco triste
olho para os meus galhos nus, desesperado,
e lembro, uma a uma, as dores do corte das saúvas
e perco, pelos dias, um a um, os meus pedaços.


Nos dentes: https://soundcloud.com/l-o-almeida/o-desejo-dos-proverbios-da