Na manhã chuvosa de 21 de janeiro
de 2013, após contato por telefone, o poeta me recebeu em seu apartamento em
Copacabana. Havia lhe dito que estávamos publicando, eu e o poeta Paco Cac, uma
revista de Poesia em Brasilia, a Z – Revista de poesia, e que gostaria de
entrevistá-lo. Esclareci que a revista, em seu terceiro número, contaria com
uma entrevista que eu havia feito com poeta Armando Freitas Filho e que o
queríamos para a revista de número 4. Na verdade, havia encaminhado algumas
questões por e-mail, mas ele julgou melhor conversarmos pessoalmente e sugeriu
um bate-papo em sua residência no Rio de Janeiro. Por conta de uma fatalidade, a
morte de meu amigo Paco Cac, os número 3 e 4 da Revista Z nunca vieram a público,
por essa razão, agora, decorrido todo esse tempo, achei interessante publicar a
entrevista com o autor do Poema sujo.
Leonardo Almeida Filho: O senhor estreia na
literatura com “Um pouco acima do chão”, em 1949. Parece-me que é um livro que
o senhor não gosta muito. É verdade?
Ferreira Gullar: O Antonio Carlos
Secchin, que é professor de literatura, poeta, e foi a pessoa que organizou a
minha obra para a Nova Aguilar, fez questão de colocar esse meu primeiro livro
como anexo no volume porque, argumentação dele, ele, como critico literário,
estudioso de literatura, pra nós é fundamental conhecer isso. Pra entender o
processo poético do autor, para o crítico – o leitor comum pode não se
interessar por isso – mas para o crítico é importante, então ele me convenceu a
pôr na obra do volume da Aguilar, como anexo, esse livro. Eu entendi
perfeitamente. Compreende? Por que a minha questão realmente é de qualidade, eu
não vou assinar embaixo de uma coisa que eu ache que não tenha a qualidade que
eu exijo.
LAF: O Senhor é perfeccionista?
FG: Não, não. Eu não tenho essa
obsessão não. Eu, quando faço o poema, no
processo de fazer eu sou extremamente exigente até concluí-lo, quer dizer, eu
não deixo...não dou por acabada uma coisa que não está acabada. Então, eu levo,
às vezes, meses fazendo o poema, está pronto, aparentemente, mas eu
fico..volto, retorno, releio, corrijo até eu achar que está pronto. Aí eu não
mexo mais. Tá pronto, tá pronto. Eu não tenho a pretensão de realizar
obras-primas perfeitas. Minha visão de mundo e da vida é outra. Eu não acho que
as coisas sejam assim. Sabe? Não vou me obsecar pra querer chegar a uma
perfeição tal que não existe. Entende? Então eu vou até onde eu considero
razoável aquilo. Está pronto, tá pronto, não vou ficar...eu não sou Deus pra
fazer a perfeição das perfeições. Não tenho esse tipo de pretensão não.
LAF: Me lembro do Mario de Andrade
no “Prefácio interessantíssimo” quando ele fala que toda perfeição é morte na
arte.
FG: Se se torna obsessão,
realmente é uma coisa que, veja bem, a obra de arte, o poema, é o resultado de
um jogo de probabilidades. Você entende? Eu tenho uma página em branco e eu não
sei o que eu vou escrever. Eu tenho uma ideia: Bom, eu vou escrever um poema
sobre o cheiro do jasmim no jardim. Bom, tudo bem, eu tive essa
experiência...mas isso é uma vaga necessidade, uma vaga vontade, mas eu não sei
o que eu vou escrever, o poema não existe...ainda. Então eu não sei o que vou
escrever, então a página em branco... tudo pode acontecer ali.
LAF: Tudo é possível.
FG: Tudo é possível. Quando eu
escrevo a primeira palavra, eu reduzo a possibilidade. Agora há menos
possibilidades, porque começou algo que limita a probabilidade, então há menos
acaso agora. Então a segunda palavra, a terceira, daqui a pouco você já está na
metade do poema e a partir daí tem menos acaso. Agora, o que já existe,
condiciona o que vai acontecer daí pra frente. Então vai virando necessidade
aquilo que era fortuito. Pode ser diferente, compreende? Não é essencialmente
diferente, mas ele pode ser, sob vários aspectos, diferente.
LAF: Outra coisa, outro caminho?
FG: Não, ele pode ser o mesmo
caminho, mas só que a forma dele não tem que ser exatamente igual por que
aquilo ali é um jogo de probabilidades. Eu costumo dizer, “A Divina comédia”
poderia não ter sido escrita, bastava o Dante ter morrido com quinze anos e não
haveria “Divina Comédia”. Tá certo?
Segundo: podia ter sido escrita um pouco diferente do que está ali,
devido às circunstâncias da vida porque é assim que as coisas acontecem. Não há
um Deus que determine o que tem que ser feito, que é fatal...não existe isso.
Eu tenho uma experiência de um poema que eu escrevi pouco antes de eu ir pro exílio,
eu escrevi o poema e quando eu cheguei em Moscou, terminada a viagem, onde eu
ia ficar, eu procurei o poema na maleta e tinha perdido. Aí eu falei: Bom, eu
vou escrever de novo, que eu não vou perder esse poema. Aí eu escrevi poema de
novo. Quando eu voltei do exílio, anos depois, eu achei o poema, o primeiro.
Era diferente do segundo.
LAF: Os versos, forma, tudo?
FG: Sim. É o mesmo tema, falo as
mesmas coisas, verso as mesmas coisas, diz coisas parecidas, mas o segundo diz
mais coisas e é melhor que o primeiro.
LAF: É um processo heraclitiano.
Não é mais o mesmo rio, né? O que o senhor acha da psicanálise?
FG: É uma teoria que tem alguns
fundamentos, tem alguma coisa de verdade, mas como tudo que o ser humano faz
não é a verdade absoluta. Tem coisas ali que são pertinentes, por que Freud era
um homem inteligente, um homem que procurava entender a cabeça humana, a mente
humana, tem verdadeiramente isso, mas, como tudo, tem lá os seus equívocos.
Coisas que a teoria mesmo leva o cara a inventar e que não existem. Ele é um
homem inteligente, ele contribuiu pra levantar uma série de questões, eu não
tenho dúvidas. O mundo é inventado, a vida é inventada, não pode achar que tal
coisa é definitiva e que isso e nem isso...as coisas não são assim não, não são
assim. O mundo é inventado. Se Freud não tivesse nascido, talvez não houvesse a
psicanálise e essas questões de inconsciente.
LAF: E Deus?
FG: Se Deus explica tudo, então
acabou. Se é Deus, o destino, então tudo está resolvido, a existência do mundo
e todas as perguntas estão respondidas mas eu, que não acredito, eu acho que
não é assim.
LAF: O Senhor acredita em Marx?Só
pra lhe provocar.
FG: Que Marx, cara. Você não vê
que ultimamente estou sendo acusado de anti-comunista, porra.
LAF: É mesmo? Eu não vi isso não.
FG: Na internet aí que falam, eu
não vejo não. Eu hoje faço a crítica de Marx, pois eu acho que Karl Marx deu
uma contribuição muito grande à luta pelos direitos dos trabalhadores, a partir
do momento em que ele publica o Manifesto Comunista, de 1848, a luta contra o
capitalismo selvagem do século XIX, que era realmente uma indignidade. Uma
ignomínia. As pessoas trabalhavam até morrer, não tinha aposentadoria, não
tinham direito algum. Eles tiravam crianças do orfanato com sete anos de idade
e botavam pra trabalhar 12, 15 horas por dia, e morriam de tuberculose dentro
das fábricas. Quer dizer, então ele se revoltou contra isso, como homem
generoso, ilustre que ele era, solidário, e encabeçou junto com outros um
movimento que mudou essa relação. Hoje o trabalhador tem uma quantidade de
direitos graças a essa luta. Isso é verdade. Mudou o mundo. Mudou a relação
Capital Trabalho. Mudou. Isso é uma verdade, agora quando ele diz que só
trabalhador produz riqueza e que o patrão só explora, é mentira. É mentira. O
empresário é um intelectual que cria empresas em vez de criar romances. Ele é
um intelectual. Eu conheço alguns empresários, um dos meus maiores amigos é um
empresário, que é uma pessoa altamente intelectualizada. Toda religião acha que
tem a verdade e o comunismo virou uma espécie de religião, tanto que os caras
que acreditam nisso eles não tem coragem de romper, eu sou um dos poucos que
tiveram coragem de dizer: Acreditei, errei, estava errado e tal. Eu fui do
partido. Preso, torturado, exilado, em função disso, mas veja bem, ser a favor
da sociedade justa é louvável, então todo cara que entrou pro Partido merece o
reconhecimento de que era um cara que queria uma sociedade melhor. Está
entendendo? O fato de ele ter errado não faz dele um bandido ou culpado de
nada. Ele estava na melhor das intenções. Ele era um cara generoso, então só
tem que entender que não deu certo. Apesar da boa intenção e apesar das muitas
conquistas, não deu certo. Se você vai a Cuba você vê aquilo, é lamentável. Veja
por exemplo: Augusto Frederico Schmidt. Um poeta e era empresário, velho. E era
um bom poeta.
LAF: Sobre militância,
engajamento. O Senhor acha que um poeta engajado corre o risco de ser um poeta
menor?
FG: Se ele colocar a preocupação
política acima da preocupação estética ele será um poeta menor.
LAF: Por que ele faz concessões...
FG: Não, por isso não. Se eu vou
fazer teatro, eu tenho que prioritariamente fazer teatro. Eu posso usar, como
Brecht usou o teatro, para divulgar as minhas posições políticas. Mas eu tenho
que me preocupar, antes de mais nada, é em fazer uma boa peça. A prioridade é a
qualidade estética, que eu posso usar para isso ou para aquilo. Para cantar o
amor ou para pregar a subersão. Seja pro que for, agora...tem que ser teatro.
Então a preocupação primeira é a estética e o grande mal do poeta engajado, de
muitos poetas engajados, é que o cara tende a botar a preocupação política à
frente da preocupação estética e aí faz besteira. O Drummond, por exemplo, não
fez isso. Os poemas políticos do Drummond têm a qualidade do poeta por que ele
nunca fez isso. Ele não fez isso de botar a coisa política na frente de tudo.
Ele nunca fez. O João Cabral também.
LAF: O Graciliano Ramos...
FG: O Graciliano. Porque que era
um grande romancista? Porque nunca fez isso. Agora o cara que fez sumiu, não
teve expressão porque ficou fazendo, na verdade, demagogia.
LAF: Panfleto.
FG: Panfleto, é.
LAF: Porque nós brasileiros ainda
não ganhamos o Nobel de Literatura?
FG: Uma das razões, pode ter
outras, mas uma das razões é que a língua portuguesa, quer dizer, a vasta
maioria dos intelectuais da Europa e dos intelectuais da Suécia não falam
português, não leem português. O Português não pode se comparar com uma língua
como o Francês ou o Espanhol, que multidões falam. Infelizmente, então isso fez
com que...porque Fernando Pessoa não ganhou o prêmio Nobel? Um poeta que
merecia ganhar. O Carlos Drummond de Andrade não merecia ganhar? O João Guimarães
Rosa não merecia? O Graciliano? Mas não ganharam. Eu acho que, basicamente, é
por causa da língua. A principal dificuldade vem daí. Agora o Saramago ganhou
porque há outro fator que influi no Prêmio Nobel, que é a questão política e
ideológica. Então, o fato do cara se destacar na luta política ou por isso ou aquilo também pode influir na
decisão do júri. E o Saramago, que já tinha sido candidato várias vezes, ele
ganhou quando ele publicou aquele livro que o Vaticano proibiu.
LAF: O evangelho segundo Jesus
Cristo.
FG: Sim, isso mesmo. Como aquilo
representava, além da boa literatura, uma luta ideológica, uma luta por valores
fundamentais, importantes, humanistas e tal, então isso contribuiu também para
o prêmio.
LAF: Se o senhor fosse o cara a indicar
o ganhador do Nobel. Quem, no Brasil, o senhor acha que deveria ganhar o
prêmio?
FG: Eu acho que Drummond
mereceria. Um poeta de muita qualidade, cara. Um dos poetas maiores aí, que já
houve em qualquer língua.
LAF: Conversando com o poeta
Armando Freitas Filho, comentei que achava que a poesia no Brasil era coisa de
confraria. Ele completou: É a confraria dos ferozes. Como o senhor vê o mercado
de poesia no Brasil?
FG: Se você for comparar o
mercado de poesia com o romance...
LAF: Auto-ajuda...
FG: Auto-ajuda não vou nem falar.
É claro que o número de pessoas que consome poesia é reduzido, não é o mesmo
que consome romance ou outros tipos de literatura,mas isso não quer dizer nada,
isso não tem grande importância, o que importa não é a quantidade, o que
importa é a qualidade do leitor. Não adianta você vender milhões de livros e o
seu livro ser de segunda categoria, você fazer uma literatura de segunda
categoria, entende? Vou dar um exemplo. Na correspondência de Cezane há uma
menção há um cara que é quem mais vende livro hoje (na época de Cezane) na
França. O último romance que ele publicou vendeu 35 mil exemplares. Ele fala
isso na carta. Aí eu pensei: Nessa mesma época, um pouco antes, Baudelaire
tinha publicado “As flores do mal”. Uma ediçãozinho que pode ter tido o que?
Trezentos exemplares. E ainda foi processado pela justiça por atentado ao
pudor. Então, os anos se passaram. Esse cara, a quem o Cezanne se refere na
carta, niguém sabe quem é. Mas o livrinho do Baudelaiere, “As flores do mal”,
já tirou, depois disso, milhões de exemplares. É um Best seller “As flores do
mal”, cara. Não é o livro do cara. O Best seller é “As flores do mal”.
LAF: A grande ironia da
história...
FG: É claro. Por que é a
qualidade que mantém as coisas. O Povo carrega a obra literária no colo. É ele.
Não adianta um amigo ficar te elogiando. Pode até ser bom pra tua vaidade, mas
se não tiver qualidade, não adianta. Aquela geração de 45 inteira, cadê? Sumiu.
Porque? Eles eram donos de todos os suplementos na época, revistas
literárias...cadê eles? Por que não tem qualidade. Ficou João Cabral, que tem
qualidade.
LAF: E o Ledo Ivo?
FG: Também. São os dois que
ficaram. E os outros sumiram porque não tinham qualidade. Não adianta, cara,
compreende? A geração do Drummond. Quantos tinham? Sobraram Drummond, Murilo e
Jorge de Lima. Havia dezenas de poetas na mesma época. Então a qualidade é que
é a coisa. E isso porque isso é que faz a permanência.
LAF: A ditadura prendeu diversos
artistas, dentre eles Gil e Caetano. Como você atravessou os anos de chumbo?
FG: Como eles eram irreverentes,
aproveitaram para prender os caras. No caso deles não era a coisa política.
Outros foram presos por razões políticas.
LAF: O senhor chegou a ser
torturado?
FG: Nessa época não, mas depois
quando eu voltei do exílio. Eu informei, pedi ao Villas Boas Correia, que era
meu colega no Estadão, na sucursal do Rio, mandei uma carta pra ele pedindo a
ele que informasse ao Comandante do I Exército, o Ministro da Justiça, a ABI
que eu ia voltar. Porque que eu fiz isso? Para eu não voltar anonimamente e ser
sequestrado, como eles estavam fazendo com as pessoas. Então eu mandei e pedi
que dessem nota no jornal dizendo que eu ia chegar, pra que eu chegasse
publicamente. Então, quando eu cheguei, estava lá no aeroporto uma turma de
amigos, todos, era Glauber Rocha, era Zuenir, era todo mundo lá, então eles não
puderam me prender quando eu cheguei. Isso é 77.Então eles não puderam me
prender por isso. Porque seria um escândalo, estava a imprensa, estava todo
mundo lá. No dia seguinte eles me prenderam.