domingo, 23 de dezembro de 2018

Manual para armadilhas















Ruínas, LAF, 2018





Existem, sim, as regras
os modos de atuação. 
É mais ou menos assim:
insiste por um tempo
insinua, nunca dê as caras,
marca território, joga a isca
puxa a corda, solta a linha
acredita no anzol.

Vai pelas beiradas, discretamente
pelo acostamento, quieto
não buzine, sem barulho
silêncio é fundamental
ser sorrateiro é imprescindível
devagar e quase sempre,
pois todo sempre tem seu fim.

A grande delícia é o jogo
a partida em andamento
os momentos da caçada
os sorrisos trocados, as piscadelas
as brincadeiras sérias
que parecem falsas nas suas verdades
mais profundas que, não ditas,
são apenas deliciosamente imaginadas.

O gosto de pecado tão salutar
de transgredir, de ultrapassar
a expectativa, a tocaia
a antevéspera do bote que
talvez nem venha a acontecer
mas que o simples fato de
nele apostar te faz arrastar a asa
fraturada, que te impedia de voar,
e chegar perto do objeto do desejo.

É mais ou menos assim

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Eclesiastes (ou tudo tem a sua hora)









Noite, LAF, 2018



Sim, meu amor, concordo
É necessário enfrentar o machismo
Sem receio, firme e forte
Encarar o racismo
sem medo e meios-termos
Acabar com o fascismo
Intolerar os intolerantes
Você tem toda a razão
É preciso lutar e lutar e lutar
Não deixar pedra sobre porra nenhuma
dinamitar Mannhatan, se preciso
preservar as baleias, os micos
combater as epidemias na África
Desancar os neo-liberais
Escrachar os banqueiros
Fustigar o agro-negócio
Escorraçar a direita e sua maldade
Concordo totalmente com você
É preciso confrontá-los
Acabar com a homofobia
Com todo o preconceito
Você está certíssima, meu amor
Mas agora, por uns momentos,
Fecha os olhos
Fica em silêncio
E chupa o meu pau.


domingo, 16 de dezembro de 2018

A luz que não nos ilumina











Nu, LAF, 2018



para M.

Ah, se a luz rasgasse a escuridão
e iluminasse cada canto, antro, cova
cada cave, greta e grota
toda senda, fenda e fresta
toda escura e funda voçoroca

Ah, se a luz entrasse sem pedir licença
em todos os buracos e becos
sótãos, porões e quartos
nos quintos dos infernos de nós mesmos.
Mas não...

A luz só quer brilhar na superfície
onde existem máscaras, dentes brancos
sorrisos botulínicos e mãozinhas de seda
beijinhos intocáveis, olhares ensaiados
versinhos bem rimados, inofensivos

A luz só quer luzir onde não importa
onde ninguém arrota, peida ou palita os dentes
e todos estamos bem alimentados
papai, mamãe, filhinho na missa e no culto
sob a luz mais brilhante e fria
onde pulsam as terríveis pulsões
que se escondem na escuridão
dos cantos, antros, covas, caves, gretas, grotas
sendas, fendas, frestas,
fundas voçorocas
buracos e becos, sótãos, porões e quartos
e quintos dos infernos de nós mesmos.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Do meu desejo












Paisagem, 2018, LAF



Sabe, velho, cansei de falar de mim
Partes de antigos sonhos não me cabem mais
Forçaram a pele, romperam-na, fissuras enormes
expandiram-se como supernova, ganharam
terreno, derrubaram muros, cercas
invadiram territórios que não me pertenciam
ciscaram na grama do vizinho,
mas não quero falar disso, chega de mim!
Vamos falar da vontade de beijar na boca
de chupar lábios vermelho-sangue
de correr para o abraço sempre quente do amor
e deixar-se enovelar, deliciosamente
como presa de uma teia de aranha
sofregamente encasulado, sendo
sugado, das entranhas retirado
o tutano, a medula, o cerne, a essência
daquilo que me faz eu e que eu não quero
falar de mim neste momento, prefiro
falar de revoluções e épicas batalhas
de vitórias tremendas e derrotas homéricas
de sóis explodindo, planetas mortos
civilizações extintas, grandes bestas fossilizadas
e adjetivos gigantescos, do tamanho do
meu desejo, do meu desejo, do meu desejo.


terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Eu, o Outro










Pássaros, 2018, LAF



A cada minuto
perco uma hora de sonhos
e uma vida inteira de desejos
como a luz que cisca no terreiro
procurando um pouquinho de escuridão;
como um parto mal realizado
cuspindo um feto disforme
no chão frio de um beco sujo;
como a corda que se parte num andaime
e os corpos que confundem-se com o asfalto
sujando a roupa de quem passa pro trabalho;
como a corda que não se partiu
presa ao pescoço de um poeta solitário
numa quitinete da Asa Norte;
como a carta de demissão no Natal,
o resultado positivo de um vírus indesejado,
o adeus de um amigo querido...
A cada minuto
deixo de ser eu para ser outro
que, do espelho, me aponta o dedo
- A culpa é só sua.


sábado, 8 de dezembro de 2018

A lâmpada encantada




















Sim, o amor é piegas
e, mais que ridículas,
suas cartas são piegas.
Seus poemas, toscos
seus versos, clichês
rasteira, sua própria ideia
Chã, vazia
e, às vezes, vã.

O amor é uma rã no deserto
afundando na areia
no mais puro desespero
Um cristalzinho derretendo-se
na estrela mais distante
e fria, fria, fria...
Uma sereia que se afoga
e lentamente mergulha
na escuridão do abismo
na mais profunda solidão.
O sinal de ocupado no telefone
No banheiro do avião
Na fila do caixa
O amor é sempre espera,
ansiedade e impaciência.

Mas, sim, o amor é piegas
E suas cartas, mais que ridículas, piegas
E todas as suas declarações, clichês

Um perfurar constante
Um gotejar permanente
Um esfolar-se em gozo
O amor é assim, desconcertante
como um santo puto e louco
que se masturba na abside
em silêncio e sacralidade
sob a benção do senhor dos danados
e da perdição desejada
como a mariposa que se queima
que se imola

no calor da lâmpada encantada.