Ferocidade
: a poesia de Alexandre Pilati
O poeta Armando Freitas
Filho, em conversa que tivemos há alguns anos, confidenciou-me que a poesia e
tudo que envolve seu processo, da criação à sua leitura, são matéria de
confraria: a confraria dos ferozes, disse-me ele. Falávamos naquela
oportunidade sobre o reduzido número de leitores de poesia, especialmente aqui,
por estas bandas periféricas abaixo do Equador, gigantesca ilha cercada por
espano-falantes, onde se cultua a última flor do Lácio, inculta e bela.
Refletindo, tempos depois, sobre essa conversa e essa curiosa definição, percebi
que ferozes são, por princípio, todos os poetas, seja pela insistência em
produzir versos num planeta que parece desprezá-los, seja pela couraça
impenetrável que desenvolvem e que os faz seguir contra tudo e todos. Ferozes
são alguns poemas que, não fazendo concessão ao bom-mocismo ou a uma possível
literatura cor-de-rosa, investem na denúncia e no confronto. Ferocidade é a
palavra que condensa melhor os belos poemas de “Autofonia” (Penalux, 2017), o
quarto livro de poesias do autor candango Alexandre Pilati.
Os poemas se nos
atravessam como pequenas facas, pontiagudas, que nos incomodam, nos causam
desassossego e nos despertam para um mundo onde a frieza e a voracidade
inflexível do capital nos consome a todos. São poemas de alerta. Seus versos,
objetivos, sem subterfúgios, tocam na ferida, expondo a podridão que nela se
esconde: a exploração cruel do homem.
São poemas que em nada, em momento algum, se mostram panfletários, uma
vez que a arte poética de Alexandre Pilati desmonta qualquer indício de pacto
com o clichê infantil de quem berra sem arte. Sua refinada arquitetura poética
nos captura na beleza de imagens, de alusões e ilusões que dinamitam os limites
do campo semântico das palavras, ampliando sua possibilidade de interpretação.
São poemas que investem em versos harmônicos, abandonando em certos casos a
melodia chã. Nesse sentido, nos delicia o estranhamento de versos que soando
independentes acabam por se chocar espaço do sentido, por aproximações
surpreendentes, ecoando sua musicalidade epifânica.
È, sem sombra de dúvidas,
uma trabalho de deliberada resistência. Uma poesia que se assume de batalha e
que combate o capital e seus males sem titubear. O verso que não se acanha diante
do perigo e se arrisca, indo da aparente coloquialidade ao rigor da mais rica
construção. O ensinamento que se esconde sob o “versi strani” de Alexandre nos
diz que está “pronto para fazer desabar num átimo os mais sólidos pontos de
vista” (“Lâmina-só”)
A um leitor desavisado
deve-se alertar, como Dante à porta do Inferno, ao entrar em “Autofonia”,
saiba, a poesia de Pilati é uma poesia de confronto. Seus versos, como no clássico
de Bandeira, estão manchados pelo real, são “a nódoa no brim”. Tocado,
contaminado pela vida, que observa atentamente, e que filtra com sensibilidade
extrema, o poeta nos traz, em versos, não apenas a denúncia de sua tragédia,
mas também a beleza de sua existência. Sua preocupação é o que nos cerca: a
vida presente, o tempo presente, como em Drummond, uma sua influência evidente.
Nesse sentido, os poemas de “Autofonia” são do tipo sentimento-do-mundo com o upgrade
do talento do Alexandre.
Observamos maravilhados essa
batalha do poeta contra o caos instalado, contra a exploração do seu povo,
contra a reificação das coisas que importam – ou que, pelo menos, deveriam
importar. Se, para o deus mercado, tudo vira coisa, o afeto-coisa, o amor-coisa,
o homem-coisa, os versos de Pilati, às vezes carnavalizando, no sentido Bakhtin
de ser, corroem a estrutura sangue-suga do capital, retirando a sua máscara,
expondo o seu tutano pútrido, como em “Um carnaval em crise”
Vou dançar contra
os homens brancos da velha família.
Vou contar com o
cordão dos derrotados.
Vou dançar com os
negros contra Wall Street.
Vou contar com o
cordão dos derrotados.
Dançaremos,
dançaremos e dançaremos.
Até que o sol se
encante, esquente e resolva
por vida novamente
neste frio corpo chamado planeta,
que
tanto cheira às etéreas notas do dinheiro.
Na poesia do autor
candango, não há espaço para a submissão ou passividade. São tempos de luta,
meu amigo! Ele parece nos dizer. Os versos de Alexandre Pilati movem-se certeiros
e nos fazem mover, quando, por exemplo, faz profissão de fé da crença
indefectível na ação, em seu “Poema no espelho”:
Meu
desamor pela pasmaceira: viril, incivil, declaração de guerra.
O poeta não se ilude, sabe
que a luta é ferrenha, dolorida, mas segue incansável, feroz e cheio de esperanças,
como quando canta Lukács e celebra “as manhãs azuis que superam as tormentas”. Não
se deixe enganar, caro leitor, não há fatalismo nos poemas de “Autofonia”, há sim
uma crença maior no sentido do humano e na possibilidade de revolução total:
política, sexual, artística. Como ele insiste em declarar, há vida brotando à revelia nas ventas do morto
(“Ralhete”), mesmo que, doloridamente, tenha que reconhecer, em “A flor e a
crise”:
a cidade que
anoiteceu sem luar
sem
estrelas em desatino mercadoria
A voz que o poeta escuta,
que nasce do registro do outro e reverbera em seu coração, não esmorece. Seu
verso declara: nossa boca morde a cidade
na boca (“Boca da noite”) e digerindo esse beijo urbano, constrói seus versos,
pequenos grandes manifestos da revolta.
Manuel Bandeira, um cidadão
com perfil liberal, se dizia um poeta menor. Não era um juízo de valor, mas uma
constatação dentro de seu conceito muito particular de menor e maior. Para ele,
o poeta maior seria, infiro aqui, o Drummond de Rosa do Povo ou Sentimento
do Mundo, ou seja, o poema maior seria aquele tipo de poema que a gente encontra
em “Autofonia”: poemas de luta e resistência, poemas de cunho social (como se
pudesse haver algum tipo de arte imune à sociedade). Poemas que vêm para ser a
mosca na sopa. Para desafinar – e desafiar – o coro dos contentes, como canta
Torquato Neto. Em crônica, comentando a crítica sofrida por autores alinhados
no que se convencionou chamar de Romance de 30, Graciliano Ramos escreveu:
Vamos
falar mal de todos os romancistas que aludem à fome e à miséria das bagaceiras,
das prisões, dos bairros operários, das casas de cômodos. Acabemos tudo isso. E
a literatura se purificará tornar-se-á inofensiva e cor-de-rosa, não provocará
o mau humor de ninguém, não perturbará a digestão dos que podem comer. Amém.
Ora, a poesia de Pilati
vem justamente para perturbar a digestão dos que podem comer. Para pisar o
asfalto de sua cidade vilipendiada pela grana, pela gana do capital. Vem para
destacar as marcas do tempo sobre a pele, sobre as instituições. Vem para
incomodar a todos nós que estamos calados diante de todo descalabro que está
acontecendo aqui e agora. Vivemos tempos de “escassez mundial de cores”, como
canta Alexandre. São tempos brancos, de machos brancos, héteros, cristãos, cidadãos
do bem; são tempos anti-negros, anti-mulheres, anti-gays, anti-arte,
anti-liberdade, enfim, tempos bicudos como tucanos demoníacos. É preciso estar
atento e forte, como canta Caetano, e como alerta o poeta em “Porto Seguro
contra um futuro incerto”
O dinheiro nunca dorme
Seu ser sem miolo
Estira os olhos bem abertos
Sobre a carne dos homens
Sobre o espírito das coisas
Nunca dorme o dinheiro
Alerta a sua alma vaga
Poética sem palavras
Escava os cantos do mundo
Com mil membros eretos
O dinheiro nunca dorme
Bate o seu felino coração
Seu léxico de platitudes
Reverbera ódio e fascínio
Seu vampiresco beijo persuade
Nunca dorme o dinheiro
Massa bruta sem sombra
Seus dentes de divino metal
Roem e massacram o tecido da vida
Viram as vísceras das nuvens e do devir
Nessa grande guerrilha
poética empreendida por Pilati, o artista se impõe como mestre de sua arte.
Seus poemas exibem virtuoso artesanato poético, se compõem de refinada
arquitetura, com a construção de imagens
desconcertantes como em “Brasília, setembro 2016”:
como bois
raquíticos,
árvores secas ruminam firmes e alheias
ou em “Meu velho”:
o ar que me
sustenta zumbe
e
a sombra suspira um gesto
ou ainda em “Selfie”:
Faço a cinzel o
sorriso e ando. O chão
movediço
e vaginal acolhe minha ilusão.
Surpreende a sensualidade
de “Broadcast yourself” que se constrói na exuberância da prosa poética dos
versos que se sucedem como fluxo de consciência, formando mais que um sentido,
uma sensação de lubricidade e paranóia, a languidez latente das palavras, de
Eros contra Tanatos:
,essencialmente
abstrusa na tua alvura de princesa, na delicadeza
dos
contornos, na luz divina que espoca o que cultivaste como
obediência
se recalca, aninha-se pacientemente em concordância
no
osso da eloquência e nas estranhas formas que se libertam
a
custo do orifício o que nunca desejaste aceitar,
O lirismo de Alexandre
Pilati se reveste de confissão mascarada pela sofisticação da frase, pela
reelaboração do sentido, penetrando fundo no mistério do outro, do desejo. Toda
poesia é, no fundo máscara construída para se dizer o que se quer ocultar. O
fingimento de Pessoa ecoa nos versos de “Autofonia”, como em “No meio do
caminho”:
eu sangro enquanto
choras asfalto, cal e carros
e te desejo
monumental, tortamente Diadorim –
macho
na chuva, fêmea nas manhãs: ninguém durma!
E no belíssimo “Noturno
de Maria”:
onde a alma tua
canta
há carinho e
abrigo teus
nalgum
canto da treva de mim;
Mas o poeta sabe que o
amor é linguagem de corpos que se entendem, não de almas (estas não se
entendem, como nos versos de Bandeira) e por isso declara no “Jardim das
musas”:
Sem
dançar, foder, beber, beijar
A pele
não entra na boca não viaja
O
sangue no sexo sem saber
Sem
poesia não fica de pé
Pica
nenhuma xota nenhuma chora
Terra
crua seca sem vida não dá nada
Não
salta saliva não nasce porra nenhuma
Nada
ovula nada vai além nada vira jardim
Musa
nenhuma engravida
De palavra
“Autofonia” é um livro
para desconcertar quem se crê confortável em sua poltrona diante da TV, para
incomodar. Se queres sossego, fuja de sua leitura. Alexandre Pilati nos deu um
livro de deliciosa violência e denúncia. Mas, creia, o que subjaz à obra de
arte é que a tensão que pulsa nos seus versos bate fundo em nosso coração,
irmanando-nos no seu tônus poético. Acabamos por vibrar em comunhão com o poeta
e querer também dinamitar a ilha de Mannhatan. Essa a razão do poema: tanger as
cordas de nosso espirito. O poeta, como Orfeu, conhece os mistérios dessa
sinfonia.
Luz do chão
ao poema que pede
tuas pernas só pra quebrar
e tuas inefáveis penas
idiossincráticas
dá a indecorosa intercorrência
da escassez mundial
de cores
dá o que falta ao poema
consistência de matéria de coisa chã
ou de vento ar: que é a coisa mais concreta e mais azul
lembra-te, poeta:
contra as certezas aéreas do poema se ergue a espinha
de sísifo
da diarista
que brande derrota dia após dia pela porta
dos fundos
ao poema extremo e mínimo
repórter do desvão bolorento do privado
coração elíptico dos modernos comendadores
dá então aqueles
roteiros roteiros roteiros
e a bulha infernal da estação
às fatigadas horas de sol
e a afásica carne de engrenagens
de ferruginosa luz do capital
dá a opressão sempre literal
sempre feita
de tétano e cortante lata
contra o poema empalhado
ouve, então, (o poema ouve, não duvides!) alguém
ouve a meio da rua ou dentro do corpo:
“vai lá, mata ele, mata bem, mata todo,
lincha bem.”
Os efeitos da leitura
desses versos são, graças ao deus de toda rebeldia, a teimosia, a insistência
contra a ignomínia (parafraseando um dos seus versos) e, apesar da libitina e de
todas as suas formas (também de um seu verso), a vontade de seguir lutando. Como
quando o poeta declara, cheio da santa ira dos justos, pleno de ferocidade, em “Ralhete”
deixe
estar que a raiva de minha raça vencerá
ela
será como sempre foi: a troça que destroça,
o
amor que vem do ódio, a vida que brota à revelia nas ventas do morto.
Sigamos na confraria.