sob o prisma de Bandeira e Cabral
Quero cantar os passos matinais
de minha prole, de meus irmãos,
desses meus espelhos fraturados
- sou seu pai, seu filho,
estilhaço -
louvar seus pés decididos, suas
mãos
suas unhas com esmalte barato
copulando óleo e carvão
seus calos, rugas, flores murchas
seus olhares destemidamente
apavorados
tão carentes e tão senhores de si
nessa manhã fria de novembro
saudar os rostos sérios, os
bocejos,
o hálito de quem mastiga o mal
dos dias
o cansaço estampado na expressão
de sono
que invade meu caminho nesta
epifania
sou eu naquele par de sujos tênis
naquela saia de brim desbotado
na farda de vigilantes e
policiais
são minhas as costas onde se
apóia aquela mochila
com livros, carnês e marmita fria
é meu o ombro que suporta o
mundo, sim
pois assim deve ser
é minha a mão calejada que
arrasta uma criança
é meu o estômago de quem não se
alimentou nesta manhã
e as dores de quem veio em pé no
coletivo lotado
no metrô, nos trens, nas vans,
nas bicicletas
sou eu, eu que mal dormi
e corro atrasado para empacotar
margarinas
repor mercadoria num supermercado
é minha a teta flácida na boca do
menino
e é minha aquela boca ávida na
teta flácida
eu quem tosse, espirra, fuma e
cospe
carpindo um dia que parece não
ter fim
neste seu começo
eu quem chuta a lata de cerveja
na calçada
quem morre sozinho na periferia
quem sonha e quem se desespera
são meus os dentes cariados que
sorriem
e que mastigam a média no bar da
esquina
eu sou o outro que me olha e que
me instiga...
Perdoa, poeta, mas não.
Definitivamente, não.
Não são galos que compõem uma
manhã
não, não são.
São homens, a urbana prole,
que tecem, em sua marcha, esta e
todas as manhãs
com seus fios de esperança e
desencanto
e seus gestos de homens
costurando o dia
tecendo a História
nessa manhã fria de novembro,
com sua melancolia e bruma,
ao tecer um novo homem em
mim.Nos dentes: https://soundcloud.com/l-o-almeida/poema-maior