sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Nardo opaco

















Eu me lasco mas faço uma ferida
No toitiço da velha madrugada
                                   Zé Limeira


Não há galos, nem teias
Há lábios cansados, ideias,
e o demônio em flor e vento
construindo um mundo de tormentos

Eia, meu cavalinho de enxofre e jasmim!
Eia, troteando de-cindido e vagarzin
num caminho sem começo, beira ou fim.

Toda tessitura é sofrimento
cosido por estar e ser no espaço-tempo
O melhor da luz é sempre a sombra
O temor da sombra é sempre a luz

Eia, cavalinho de espora e pés fendidos!
Eia, vai marchando serelepe e comovido
sob o claro dia escuro que há em mim

A insubstância afiada da luz
proto-foto-faca a penetrar-me
acende-me na volátil escuridão brilhante
turvo, pasmo, tardo a ver-me
verme luminosamente pardo, Nardo opaco

Eia, cavalinho sujo e perfumado!
Eia, galopando o espanto pelos prados
sem horizonte ou muro ou vala ou cerca

Ardo na manhã sem teia,
sem galos a ciscar na areia
Eu-sol, eia cavalinho!
Eu-solidão, eia alazão!


No aniversário de Mário de Andrade.
Aos meus companheiros de cavalgada.


Nos dentes:  https://soundcloud.com/l-o-almeida/nardo-opaco



quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Encanto radical



                             









                                            

As pessoas tecem suas vidas
criando mil tapetes tão iguais
de mesma cor, traçado, estampa e fio
com a mesma e triste ausência de estilo

expõem finalmente os tais capachos
sem graça, sem surpresa ou poesia
sobre as pedras imutáveis do real

e Deus, que observa entediado
a tragédia dessas vidas tão banais,
transborda na maldade de pisá-los
ou simplesmente em vê-los desbotar



segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

O homem menos o homem









O homem menos o homem

                                 Para Ferreira Gullar

Que será do vento sem as velas enfunadas
e os cabelos soltos de Anna Beatriz?
Que será da coisa sem o homem
do objeto sem magia e misticismo
da estátua de São Judas Tadeu sem nossa fé
do touro de bronze em Wall Street sem nossa ambição?
Que será do sol sem minha pele ardendo
do ar sem pulmões para entranhar
da água sem as quilhas para feri-la
sem os corpos para penetrá-la
sem as sereias para sonhá-las?
Que é do mundo sem o humano
sem a mão do homem sobre o barro
que é de Deus sem nossas preces
e nosso temor?
Que será das cruzes sem os crucificados?
Que será da lua sem os delírios
senão a força invisível das marés para ninguém?
Nada, nada, um grande nada existe em nossa inexistência
O que se passa numa estrada sem viventes?
talvez o som de pegadas sem donos no oco do silêncio
e a invenção de um homem caminhando lentamente








Lição de Metafísica I



Se soubesse
como não sei hoje
talvez fizesse o mesmo
ou não?
Se pudesse
o que não devia
faria como se quisesse
então
Se falasse
o que escondia
talvez não chorasse a esmo,
em vão.
Se perdesse
o que não queria
não vinha como quem padece
Oh, não!

Mas ao vê-los todos ocultos
sinto como se soubesse
que,  ver, é o mal mais profundo
como quando a gente esquece

de tudo e todos do mundo
e volta a pensar na prece
como saída pra tudo
como quem, são, falece.






quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Poema para Raimundo Correia



Sofra o coração, embora!
Sofra! Mas viva! Mas bata
Cheio, ao menos, da alegria
       De viver, de viver!



Ah, Correia, meus pombos que não voltam
e por não voltarem eu que me acabo
e vou-me entre brumas de cigarros que não fumo
e com notáveis fumos de defuntos que evaporam

Ah, Correia, meu poeta dos pombais desertos
eu com meus oníricos desenhos tediosos
suspirando o tédio úmido dessa chuva que não cessa
e que por não cessar vai me afogando

Ah, Correia, se soubesses o quanto dói não ter mais pombas
e assim, sem asa ou vôo, seguir telúrico
chafurdando o que era sonho em lama e limo e lodo
apoiado no pombal vazio desses anos
agora, mais que nunca, pombal, pombal




terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

As fotos do pênis de Michael Jackson


Para Allen Ginsberg

O poeta atento, atado, assiste a tudo:
estes são tempos de luminosa escuridão e fastio
são tempos de cio e de vícios, de ócio e de estio
de olhos encandeados e almas cegas, tempos de vazios
são tempos velozes, de afeto veloz, de eternidade veloz
fast food, fast sex, fast love
são tempos de nãos, de muitos nãos
não à dor alheia, à lagrima do irmão
não à fome e ao cansaço do vizinho
não ao afeto, não à carícia, não às delícias
não ao meu, ao teu, ao desespero de nós todos
mil vezes não e não, infinitos nãos...
não ao sim
são tempos de valores cruéis, tempos de escura luz
pois é preciso ver as fotos do pênis de Michael Jackson

que importa se 800 mil tutsis são degolados em Ruanda?
se vários cobradores fonsequeanos andam pipocando inocentes?
é preciso ver as fotos do pênis de Michael Jackson.
quem quer saber de Maria mula que morreu de overdose quando 15 pacotes de cocaína pura estouraram em seu estômago?
que notícias me dão daqueles imigrantes afogados no mar do Caribe tentando a Ítaca norte-americana?
que importa o choro que cultiva o ódio dos colonos judeus que enfrentaram a polícia na desocupação de Gaza?
quem olha pelo menino palestino cujo pai explodiu-se num mercado de Telaviv?
é preciso ver as fotos do pênis de Michael Jackson
a quem interessa a agonia de periféricos soropositivos que definham sem auxílio e sem remédios?
quem fala daqueles que choram no apartamento ao lado?
é preciso ver as fotos do pênis de Michael Jackson
quem há de acariciar e velar o sono agitado do pequeno órfão em São Paulo e Jacarta?
quem de nós, que não nos sabemos, irá falar pelos desempregados do subúrbio da cidade do México e da invasão da Estrutural em Brasília?
quem quer saber da rosa do povo que míngua à luz destes tempos de negros sóis?
é preciso ver as fotos do pênis de Michael Jackson.

o poeta estende ao sol a sua alma esfiapada mostrando sua dor interminável concentrada
e a poesia de fiapos que apresenta, condensada, morre lentamente...asfixiada:
são estes, tempos de muita luz e cegueira iluminada
de abandono e vastas solidões acompanhadas
tempos de um tudo que é nada
tempos de avesso e aversões.
estes são tempos de sins e de pecados
sim à mão fechada e punho erguido antecedendo a porrada na cara do inocente
sim ao escarro na boca que há muito não beija
sim ao linchamento do estuprador em Ibotirama e ao espancamento do sem-teto na Praça da Sé
sim ao ódio e seu combustível de reservas inesgotáveis.
Sim ao Não

a mulher branca e a mulher negra querem ver as fotos do pênis de Michael Jackson o homem branco e o homem negro também querem ver as fotos do pênis de Michael Jackson
o menino e a menina, brancos, o menino e menina, negros, querem ver as fotos do pênis de Michael Jackson
a avó branca e o avô branco, o avô negro e a avó negra, querem ver as fotos do pênis de Michael Jackson
os tios brancos e os tios negros, todos querem ver as fotos do pênis de Michael Jackson
o padre, o pastor, o rabino, o líder sindical, o delegado, o juiz e o detetive, brancos e negros, querem ver as fotos do pênis de Michael Jackson a taquígrafa,
o repórter fotográfico e o motorista da van que transmite o julgamento ao vivo, todos brancos, querem ver as fotos do pênis negro de Michael Jackson
os transeuntes, brancos e negros, que lêem jornais , querem ver as fotos do pênis de Michael Jackson
os internautas, ciberneticamente brancos e negros, querem, na grande rede, ver as fotos digitalizadas do pênis de Michael Jackson
os políticos, republicanos e democratas, brancos e negros, querem ver as fotos do pênis de Michael Jackson
na Alemanha e na Inglaterra brancas, todos querem ver as fotos do pênis negro de Michael Jackson
os virgens, os pedófilos, os abusados e os portadores de vitiligo, brancos, negros, querem ver as fotos do pênis de Michael Jackson
os santos, que não têm cor, querem ver a foto colorida do pênis de Michael Jackson

carros explodindo, gente explodindo, estômagos implodindo, corpos sofrendo ao frio e fome e sede e dores e, o pior, nenhum deles viu a foto do pênis do Michael Jackson.
escritores escrevendo, leitores lendo, prostitutas trepando, ladrões trabalhando, lesmas lesmando e nenhum deles viu a foto do pênis do Michael Jackson
Woytila morreu sem ver; os 111 policiais iraquianos mortos pelas milícias fundamentalistas em Bagdá não viram; a junkie belga encontrada morta num beco em Bruxelas também não viu a foto do pênis de Michael Jackson.
a dona de casa ocupada em lavar, passar, bordar e foder com o marido, não teve tempo de ver;
o operário que mergulhou vinte metros abaixo da terra para soldar os fios de cobre não teve jeito de ver;
o trabalhador escravo na fazenda de um deputado no Pará não pensou em ver;
a freira carmelita com febre, no claustro, não conseguiu ver a foto do pênis de Michael Jackson

... e o mundo continua rodando, rodando, rodando em torno das minhas retinas fatigadas e que ainda não viram a foto do pênis de Michael Jackson.
o poeta atado, atento e atônito, assiste a tudo:
estes são tempos estranhos, de luz e escuridão.
não há dor capaz de mover a mão do homem em direção a outro homem
não há mais outro
e todo sentimento do mundo parece estar apenas no desejo de ver as fotos do pênis de Michael Jackson.



Nos dentes:

https://soundcloud.com/l-o-almeida/as-fotos-do-p-nis-de-michael

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Nessas manhãs de vento...












Pescadores no mar, Turner (1796)


Sou campa, epitáfio em carne
movo-me por uma lavoura de corpos
vasto campo de ossos e cabelos, vou.
Repousam em mim velhos fantasmas
assombram-me nas noites de meus dias,
espantam meus olhos com sua invisibilidade
sussurram em meu ouvido sua ausência tão presente
tão presente, tão aqui, tão cá, presente...
Sou curvo e torto pelo peso de meus mortos
carrego-os sobre os ombros, sob o peito
ouço-os chorar, cantar a minha finitude, cobrar palavras
sinto suas línguas frias em minha pele quente,
lamento-os. Alimento-os com a solidão do meu medo
saboreio sua língua em minha língua, sua pele em minha pele
sua insubstância compõe minha substância.

Eu
túmulo, cova,
eu todo cemitério
Eu
catacumba, ossuário
inteiro necrotério

Meus defuntos defumam meu espírito
com seus vapores de saudade e sofrimento
este espírito meu que é também deles,
tomam-no de assalto no estupor das manhãs nubladas
nas tardes de chuva ou no silêncio absoluto das madrugadas
escuto seu soluço no sabiá do quintal, seu riso no cantar das cigarras
quase posso vê-los no embaciado do olhar sonolento
invadem como sem-terras este latifúndio de vida e sentimento
apossam-se de minha alma quando rio, ou choro, ou tremo
meus mortos, carrego-os e carregam-me.

Eu
alma penada,
morto-vivo
Eu
caça-fantasma,
zumbi

Hoje, ao ouvir uma velha canção no rádio,
reconheci a voz de um deles nos versos e na modulação
outros revivem quando leio seus poemas favoritos, quando sinto certos cheiros,
quando experimento o frio ou fome ou sede, quando como ou leio,
lá estão, todos eles, os maravilhosos eles que se foram
com seus medos, sonhos, desejos e segredos mais sagrados
seus planos, flores que a morte colheu com a mão fria e pestilenta
flores raras e doloridas no jardim do inevitável,
frustrados num buquê trágico de magnólias esquecidas
meus fantasmas residem em meus sentidos, renascem neles
uma flor, o tato, um vento fresco que me bate ao rosto
a visão de um pôr de sol, uma alvorada, um barco tosco
me trazem seus cheiros, peles, risos francos, abertos
depositam em mim suas carnes, suores e espermas e mênstruos e salivas
e valsas dançadas e carnes mastigadas e roupas rejeitadas
seus cabelos, palpitação de amores, rancores e vinganças não vingadas
meus mortos estão muito vivos nas coisas do mundo sensível que me cerca
vejo-os ressuscitar a cada lampejo de memória, cada lembrança
cada inexplicado momento de saudade
vivos em mim, meus mortos não morrem

Eu
eterno, passageiro
Eu
decrépito, derradeiro

Um dia vou-me repousar em outro corpo
como matéria de lembrança, de euforia, talvez tristeza
estarei vivo na carne viva de meu filho?
de meu amigo? de minha mulher? do cobrador? do bancário?
do ascensorista que me levou ao último andar da Matriz?
do médico que assinou meu atestado de óbito?
A única certeza que tenho é que viverei neste poema
quando, ao leres, lembrares o nome do poeta que o compôs
um velho bardo, talvez sem rosto, perdido na poeira das manhãs de vento



Nos dentes: https://soundcloud.com/l-o-almeida/nessas-manh-s-de-vento