Pescadores no mar, Turner (1796)
Sou campa, epitáfio em carne
movo-me
por uma lavoura de corpos
vasto
campo de ossos e cabelos, vou.
Repousam
em mim velhos fantasmas
assombram-me
nas noites de meus dias,
espantam
meus olhos com sua invisibilidade
sussurram
em meu ouvido sua ausência tão presente
tão
presente, tão aqui, tão cá, presente...
Sou
curvo e torto pelo peso de meus mortos
carrego-os
sobre os ombros, sob o peito
ouço-os
chorar, cantar a minha finitude, cobrar palavras
sinto
suas línguas frias em minha pele quente,
lamento-os.
Alimento-os com a solidão do meu medo
saboreio
sua língua em minha língua, sua pele em minha pele
sua
insubstância compõe minha substância.
Eu
túmulo,
cova,
eu
todo cemitério
Eu
catacumba,
ossuário
inteiro
necrotério
Meus
defuntos defumam meu espírito
com
seus vapores de saudade e sofrimento
este
espírito meu que é também deles,
tomam-no
de assalto no estupor das manhãs nubladas
nas
tardes de chuva ou no silêncio absoluto das madrugadas
escuto
seu soluço no sabiá do quintal, seu riso no cantar das cigarras
quase
posso vê-los no embaciado do olhar sonolento
invadem
como sem-terras este latifúndio de vida e sentimento
apossam-se
de minha alma quando rio, ou choro, ou tremo
meus
mortos, carrego-os e carregam-me.
Eu
alma
penada,
morto-vivo
Eu
caça-fantasma,
zumbi
Hoje,
ao ouvir uma velha canção no rádio,
reconheci
a voz de um deles nos versos e na modulação
outros
revivem quando leio seus poemas favoritos, quando sinto certos cheiros,
quando
experimento o frio ou fome ou sede, quando como ou leio,
lá estão,
todos eles, os maravilhosos eles que se foram
com
seus medos, sonhos, desejos e segredos mais sagrados
seus
planos, flores que a morte colheu com a mão fria e pestilenta
flores
raras e doloridas no jardim do inevitável,
frustrados
num buquê trágico de magnólias esquecidas
meus
fantasmas residem em meus sentidos, renascem neles
uma
flor, o tato, um vento fresco que me bate ao rosto
a
visão de um pôr de sol, uma alvorada, um barco tosco
me
trazem seus cheiros, peles, risos francos, abertos
depositam
em mim suas carnes, suores e espermas e mênstruos e salivas
e
valsas dançadas e carnes mastigadas e roupas rejeitadas
seus
cabelos, palpitação de amores, rancores e vinganças não vingadas
meus
mortos estão muito vivos nas coisas do mundo sensível que me cerca
vejo-os
ressuscitar a cada lampejo de memória, cada lembrança
cada
inexplicado momento de saudade
vivos
em mim, meus mortos não morrem
Eu
eterno,
passageiro
Eu
decrépito,
derradeiro
Um dia
vou-me repousar em outro corpo
como
matéria de lembrança, de euforia, talvez tristeza
estarei
vivo na carne viva de meu filho?
de meu
amigo? de minha mulher? do cobrador? do bancário?
do
ascensorista que me levou ao último andar da Matriz?
do
médico que assinou meu atestado de óbito?
A
única certeza que tenho é que viverei neste poema
quando,
ao leres, lembrares o nome do poeta que o compôs
um
velho bardo, talvez sem rosto, perdido na poeira das manhãs de vento
Nos dentes: https://soundcloud.com/l-o-almeida/nessas-manh-s-de-vento
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