quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

A arte de Deus e do Diabo





















Dizem que J.S.Bach era exímio
na arte de assar bolos e pães
Um dom de Deus, afirmavam.
Meticuloso como um alquimista
em seu laboratória de delícias:
a quantidade exata de fermento,
a mão na massa, os olhos atentos
caprichoso ao untar a forma com manteiga
e ao juntar frutas secas e nozes na mistura.
O tempo exato para dourar a camada delicada
da iguaria e assá-la internamente.
Isso vinha de Deus!
Juram alguns que sua arte era muito apreciada
pelos filhos, netos, amigos em Weimar e Leipzig
que a consumiam no Natal
na Páscoa, aos domingos de ócio após o culto
e prece e chás
e mesmo à noite, após o sexo luterano sem prazer.

Nas horas vagas, sozinho
sentado diante do velho cravo
enveredava por largos campos de demônios
e dedicava-se a rabiscar notas musicais.
E isso vinha do Diabo.

Dizem que J.S.Bach preferia o forno,
seu calor certeiro e controlado
a cozinha e o perfume dos bolos e dos pães,
à árdua, áspera, tarefa de compor sonatas e concertos.
Entre o temor sincero ao Deus de Lutero,
e a criação da prole numerosa,
apenas a intermitência do vício mundano
silencioso e solitário
de registrar na pauta,
como frutas secas na massa de um bolo abstrato,
as notas bem temperadas
nas claves de sol e fá e dó.
Pequenos pontos e armaduras
que, fermentados ao piano,
espargiam um tipo raro de perfume
uma fuga ao divino modo de assar bolos e pães
que apenas o nariz da alma podia captar
e o estômago do espírito saborear.

Dizem que, ao morrer, J.S.Bach 
aspirava o cheiro bom que vinha da cozinha
e isso era de Deus e era bom;
e com a mão, no ar, fazia gestos de quem regia
uma orquestra num grande concerto.
e isso vinha do Diabo, e era ainda melhor.








quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Em busca de Luis Miguel Nava












O corpo dividido em duas partes
fechadas
à chave uma na outra, avanço
num duplo coração como se fosse
ao mesmo tempo num só barco por dois rios.
“Dois rios”, Luís Miguel Nava

I


Eu, que nunca te soube até então,
procurei-te
como um peregrino ao Graal
ralei meus joelhos por catedrais abandonadas
em grande parte da velha Lisboa,
Sob escombros de terremotos ancestrais
chamei teu nome, baixinho, só pra mim
busquei teus versos, que não ecoam mais,
incansavelmente.
Subi ruas de antigos casarões
onde teus pés terão pisado
no passo firme da arte em calças.
Havia fantasmas quarando nas janelas
onde pequenos jarros de flores descansavam
na modorra de uma tarde de domingo.
Vi teu rosto de anjo triste nas vidraças,
em cada pedra, azulejo, portão de ferro.
Em cada olhar enviesado,
vi teus olhos de Rimbaud-miúdo.
Peguei-me então, aos poucos, a perceber
que, por todo esse tempo e trajetória,
buscava a mim, ao procurá-lo,
a mim, o poeta torto e periférico.

II


Eu, o suicida de dentes amarelos,
pendurado em meus tendões
pelo pescoço, pendulando,
cada passo encharcado de saudade
quebrando a métrica e a prosódia
da caminhada em busca de mim
e de ti, percebi, com espanto, a quem buscava.
Eu, que morri contigo todas as vezes, procurava-te
na poesia oculta nos alfarrabistas do Rossio
e encontrava teu corpo apenas
tua carne apodrecendo na casa do pântano
tua dor medonha e solitária
tua tragédia pasoliniana
estranhamente tão minha
tão medularmente minha
dolorosamente minha
minha, que também me diminuo
com a morte alheia.

III


Onde reside a dor de ser poeta
se fingimos sempre não havê-la
quando realmente há,
e, havendo, nos consome?
Onde a peçonha do poema que
nos envenena e nos aproxima tragicamente
de nossos destinos insuspeitados?
Como sabê-la? Purgá-la?
Onde o antídoto?
Talvez no afeto
no abraço, na mão estendida, no aceno
emoldurando um riso aberto
em total transparência e verdade.

IV


Onde te encontro, meu poeta?
Nos teus versos? Não.
Decididamente não.
Lá não te encontro.
Um poeta nunca está nos seus poemas
um outro, ali, estranho, se aloja e os habita
Esse outro, meticulosamente construído,
desenhado no mais puro desespero, mostra
a cara, os dentes, as presas, as garras
morde o fruto amaldiçoado
sorve sua seiva adocicada
armadilha de deuses incestuosos
e vomita tudo em versos.
Ouço seus passos à noite quando,
abraçado à insônia, tento escrever
cruzar a ponte que leva
aos seus braços
tão meus, tão meus
e ao mesmo tempo tão diversos.
Esse outro, o do poema, não sou eu
não és tu, não é poeta alguma que conheçamos
posto que morremos, apodrecemos,
e sofremos nossas dores reais
nossos amores reais
que sangramos e cuspimos
nas calçadas de Lisboa,
nas entrequadras de Brasília
nas ruas de Copacabana
no largo mais frio de Viseu.

V


Eu, que te procuro, meu poeta
descobri que te encontro
sempre que teus versos
como um beijo
invadem minha boca
e dançam pela língua
e despem esse estranho outro do poema
para mostrar a tua cara
como num espelho
que a linguagem ilumina
e a palavra reflete.


segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Ganimedes







Quisera eu que um deus alado
em seu desejo me provesse
com seu furor e um longo abraço
e ao fim restasse que eu me desse

inteiramente, corpo e alma
Sem opção: nem não, nem sim
e dessa forma, em total calma,
eu me entregasse ao gozo, enfim.

Submeter-me aos seus caprichos
entre a carícia e o gesto irado
Sei bem que os deuses são lascivos

Devoram almas aos bocados
E a nós o doce sacrifício
o bom destino, o leve fado?

Nuvens e ruídos



O olhar escuta:
que berra a voz na folha?

De que fala um poema?
Dos galos, manhãs,
do desejo de dinamitar Manhatan?
Do beco, do burguês,
de voar fora da asa?
É disso que fala um poema?

De que trata um poema?
De pássaros, folhas,
loucura, amor e ódio?
De navios negreiros,
mares raivosos, albatrozes?,
É disso que trata um poema?
O que lateja no manifesto?

Todo poema fala de desespero
- do mais puro desespero
de estar vivo,
de encarar a morte -
Disso tratam os poemas
e o resto é alegoria,
migalhas em linguagem,
filigranas,técnica, máscaras
- galos, manhãs, ilhas, asas
dores, amores, navios, luares
lupanares, becos, burgueses... –
tudo penduricalhos-véu
Nuvens
ensombreando todo desespero
ruídos
embaralhando a voz.