quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Caminhada


 


Viver é uma caminhada

com chegada já prevista

pré-determinada

e que partindo do parto

tem seu ponto final

na estação indefinida

da perdida experiência

dos antigos passos.

 

Andando em linha reta

apressa-se a caminhada

para o fim indesejado

Revolteie, pois, o seu trajeto

Tente uns atalhos

Experimente umas trilhas

Arrisque uns saltos

faça retornos, curvas

mais que acentuadas

pois o tempo não se ganha.

 

Sem medo, sem receios

aproveite o caminho

cada dia ensolarado

cada noite enluarada

e manhãs de esperança

cada minuto caminhado

Saboreie cada passo dado

pois o tempo é um carro célere

que nos atropela no caminho

e nunca anda de ré.

terça-feira, 29 de setembro de 2020

Os mesmos

 









A máscara, Fred Svendsen




Podia tanta coisa

(os desvios)

não fossem os trilhos

Talvez o mundo

(sem fronteiras)

não fossem as amarras

Ou os sete mares

(sem calmarias)

não fossem as âncoras

 

Podia outros caminhos

(mesmo íngremes)

não fossem as pedras

Outras cidades, países

(planetas)

não fossem as correntes

Talvez outros amores

(desejos)

não fossem as culpas

 

Podia ser outro e melhor

(distinto)

não fossem os medos

Quem sabe outros modos

(jeitos, maneiras)

não fossem os outros

Mas nada parece romper

os trilhos, as amarras, as âncoras, as pedras, as correntes, os medos, as culpas, os outros

e seguimos

os mesmos.

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

A fossa

 



 

        Sobre um poema da Adriane Garcia

        Aos meus amigos poetas

 

Não se atreva a salvar um poeta

é no afogamento que eles respiram

vivem no mergulho mais profundo

onde a poesia encandeia

seus olhos frios

de peixes acostumados às fossas.

 

Não toque neles

retirá-los, à força, da água,

por melhor que sejam seus motivos,

é determinar a sua morte

e o fim da poesia.

 

Um poeta em conforto

é criatura inerme

porco-espinho nu

serpente sem presas

tigre sem garras.

 

Deixai, portanto que eles se afoguem

a cada braçada em direção ao abismo

num lugar que nunca apreenderemos

e tragam a luz de seus versos para nossa escuridão.

 

Só os poetas percebem

a lenta agonia

que sofremos

sem nos darmos conta

que morremos

como peixes sobre a terra

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Outro poema sobre uma notícia de jornal


 

Thaylanne voltava de uma festa no entorno do Distrito Federal

foi abordada por três homens de bem

que lhe berraram ao ouvido que sapatão tem que morrer

e começaram a espancá-la com barra de ferro, madeira e concreto

quebrando-lhe dentes, o maxilar, rachando seu crânio, macerando sua carne

e a deixaram sem sentidos, caída sobre a lama.

Thaylane tinha dezessete anos e muitos sonhos

que se findaram numa poça de sangue.


Há, sim, demônios no caminho

vestem dentes brancos

usam branco colarinho e crucifixo

vão à missa aos domingos com a Bíblia sob o sovaco

comungam e beijam os pés do senhor morto

num langor contrito e convincente

batem gentilmente em nossas costas

e nos aniversários apertam as bochechas das crianças

mostrando a cara falsa da bondade.

À noite, quando a noite é mais escura

dentro de suas consciências frias,

saem pelas ruas e mastigam todos os anjos

devoram todos os santos

destroem toda beleza.

Esses demônios dormem

em seu vizinho, em seu irmão, seu delegado

seu patrão, seu professor, seu namorado

dormem ao lado de quem está ao seu lado

e quando acordam...ah, quando acordam...

o mundo mostra-se mal e podre

e sem milagres.

 

LAF

sábado, 1 de agosto de 2020

A moral cinzenta do fatalismo


Segundo Bosi, no seu referencial História concisa da literatura brasileira, a poesia de Raimundo Correia (1859 -1911) destila a moral cinzenta do fatalismo. Ao comentar, superficialmente, a poesia parnasiana desse “mestre seguro” , “menos fecundo e mais sensível” que os demais parnasianos, Bosi considera que seus versos são “exemplo de uma poesia de sombras e luares que inflectia amiúde em meditações desenganadas”. Na verdade, como muitos outros bons autores dessa nossa língua, Raimundo Correia é um ilustre desconhecido. Admirado por muitos escritores (Manuel Bandeira e Mário de Andrade são seus fãs de carteirinha), dentre os quais me incluo, é autor de um dos mais belos sonetos de nossa literatura, “As pombas”, sob o qual revolteia uma polêmica acerca de “inspiração” em outra obra. Não me interessa aqui discutir essa pendenga. Em 1979, ganhei um exemplar de “Poesias” (6ª.Edição, 1958), coletânea do autor que inclui poemas de três de suas obras, “Sinfonias” (1883), “Versos e versões” (1887) e “Aleluias” (1891). Em dedicatória, leio: “Ficou muito tempo numa anônima livraria e foi encontrado por acaso. Para o Leo, meu amigo paraibano e ‘parnasiano’. Norma”. Devo confessar que de parnasiano tenho apenas a paixão apolínea por um verso perfeito, como apreciador de poesia, não como poeta – que não tenho a paciência para limar versos, esmerilhar palavras, lapidar rimas.
Fiz um poema dedicado ao Raimundo Correia, mas antes registro aqui o maravilhoso poema III, conhecido como “As pombas”:

Vai-se a primeira pomba despertada
Vai-se outra mais... mais outra...enfim dezenas
De pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sangüínea e fresca a madrugada...

E à tarde, quando a rígida nortada
Sopra, aos pombais de novo elas, serenas,
Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Voltam todas em bando e em revoada...

Também dos corações onde abotoam,
Os sonhos, um por um, céleres voam.
Como voam as pombas dos pombais;

No azul da adolescência as asas soltam,
Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos corações não voltam mais...

(Raimundo Correia)


Agora o do Leozinho:

Poema para Raimundo Correia


Sofra o coração, embora!
Sofra! Mas viva! Mas bata
Cheio, ao menos, da alegria
De viver, de viver!

Ah, Correia, meus pombos que não voltam
E por não voltarem eu que me acabo
E vou-me entre brumas de cigarros que não fumo
E com notáveis fumos de defuntos que evaporam

Ah, Correia, meu poeta dos pombais desertos
Eu com meus oníricos desenhos tediosos
Suspirando o tédio úmido dessa chuva que não cessa
E que por não cessar vai me afogando.

Ah, Correia, se soubesses o quanto dói não ter mais pombas
E assim, sem asa ou vôo, seguir telúrico
Chafurdando o que era sonho em lama e lodo e limo
Apoiado no pombal vazio desses anos
Agora, mais que nunca, só pombal, só pombal.

domingo, 14 de junho de 2020

Experimento








     “viver não é para amadores”



Pondere
Não é hora de alimentar as larvas.
Vê como se arrastam pelas pedras?

Ainda há pouco havia estrelas
e chovia sobre o soluço dos batráquios.
Agora há poças no pátio onde adormecem
homens seminus que nada esperam
além do frio.
Talvez seja sempre inverno
e nenhuma primavera mostre os dentes.
A esperança é filha bastarda do talvez.

Reconheça o grande esforço das monções
em afogar o gado e as plantações de arroz 
Nada sobrevive à falta de incentivo,
nem mesmo as larvas sobre as pedras
dispensam alimento

Talvez a tua própria carne apodrecida
ou tua pele esticada no curtume
deponha sobre ti,
em como não fizeste o necessário
e por essa razão perdeste o senso
o rumo, o prumo
a hora exata.

Agora é o tempo do sonho
e os rios mansos começam a correr,
arrastando os sorrisos das crianças
e os olhos frios dos peixes
para a boca salgada de oceanos desconhecidos.

Pondere
Nada é mais real que a fantasia.
Nada mais concreto que a máscara.
Todo o resto é possibilidade
apenas possibilidade
como um gato vivo e morto
arranhando uma caixa 
num mundo de surdos.

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Noite muda






















Era noite, eu lembro bem.
Pássaros caíam, estrebuchando,
grilos em silêncio absoluto
Era uma noite muda.
Estrelas piscavam em morse
nas poças escuras do chão estrelado e frio
que pisávamos com medo
e nada entendíamos.

Nas paredes, impregnando-as,
as dores da família, seus rancores,
desejos, dissabores, vícios;
cada tijolo encharcado de mágoa,
inveja e vontades sem potência;
o rejunte tingido de lodo e limo
e sonhos não vingados, sonhos-fungo;
rachaduras prenhes de saudades
e insuspeitadas possibilidades.

A casa, às escuras, flutuava no vazio dos olhos
pousados, como andorinhas úmidas,
num horizonte que se afastava lentamente
sob o negrume daquela noite triste
arrastando, em silêncio, os pássaros mortos pelo chão.



terça-feira, 12 de maio de 2020

Passarão os passarinhos


                       

       












Anjos, LAF (nanquim)


Aos poetas mortos    

Sim, os poetas morrem
apodrecem, cheiram mal, decompõem-se
exatamente como os fascistas
e as virgens que envelheceram sem maldade.

Vão-se nas dores de um infarto,
na agonia de pulmões contaminados,
na febre noturna dos desvalidos,
no sangue pútrido sobre o asfalto
na solidão das UTIs
nos porões, nos quartos cor de rosa.

Não se iluda, os poetas, como os fascistas,
perecem e dissolvem-se na terra, feito adubo,
adormecendo com as raízes;
tornam-se cinzas nos fornos
túmulo de todas as fênix;
abrigam larvas e vermes
tornam-se carniças.

Impossível negar, os poetas, como os fascistas
e as virgens que envelheceram sem maldade
findam-se um dia, inevitavelmente,
passam, mesmo sendo passarinhos
a morte os iguala insensivelmente.

Então, o que nos sobra?
Versos, versos e versos
que valem a própria existência;
crueldade, ignorância e desprezo,
que nos impelem à luta implacável
e sem perdão.
A vida inteira que nos cabe e nos abraça,
depois que se vão os poetas,
os fascistas e as virgens que envelheceram sem maldade,
justifica-se pela arte, pela luta e pelo desejo.

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Do caos no cosmo






















À placidez da água fria
do lago escuro ao pé da montanha,
o desespero das corredeiras que berram,
esperneiam, não ponderam, como
cavalos líquidos selvagens sobre pedras
batendo escandalosamente os seus cascos no limo-lodo.

Tal qual o horrendo, o terrível,
que habita o olhar do anjo que sorri
e que te fita, impassível,
enquanto corta delicadamente
a linha da tua vida.

Como fosse um vulcão pulsando
chama que respira sob a pradaria
no instante que antecede a explosão
que revela, sob a mansidão,
o inferno que habita o paraíso.

É assim a paixão dos tímidos e recalcados,
perigosamente pura,
dolorosamente controlada,
sempre à espera da fagulha,
do clique, do estalo, do momento exato
em que lhe mordem a jugular
daquilo que a fará romper a calma
manifestar-se formidavelmente
sendo inexplicável a muita gente
mas tão previsível aos que sangram em silêncio.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

A arte de Deus e do Diabo





















Dizem que J.S.Bach era exímio
na arte de assar bolos e pães
Um dom de Deus, afirmavam.
Meticuloso como um alquimista
em seu laboratória de delícias:
a quantidade exata de fermento,
a mão na massa, os olhos atentos
caprichoso ao untar a forma com manteiga
e ao juntar frutas secas e nozes na mistura.
O tempo exato para dourar a camada delicada
da iguaria e assá-la internamente.
Isso vinha de Deus!
Juram alguns que sua arte era muito apreciada
pelos filhos, netos, amigos em Weimar e Leipzig
que a consumiam no Natal
na Páscoa, aos domingos de ócio após o culto
e prece e chás
e mesmo à noite, após o sexo luterano sem prazer.

Nas horas vagas, sozinho
sentado diante do velho cravo
enveredava por largos campos de demônios
e dedicava-se a rabiscar notas musicais.
E isso vinha do Diabo.

Dizem que J.S.Bach preferia o forno,
seu calor certeiro e controlado
a cozinha e o perfume dos bolos e dos pães,
à árdua, áspera, tarefa de compor sonatas e concertos.
Entre o temor sincero ao Deus de Lutero,
e a criação da prole numerosa,
apenas a intermitência do vício mundano
silencioso e solitário
de registrar na pauta,
como frutas secas na massa de um bolo abstrato,
as notas bem temperadas
nas claves de sol e fá e dó.
Pequenos pontos e armaduras
que, fermentados ao piano,
espargiam um tipo raro de perfume
uma fuga ao divino modo de assar bolos e pães
que apenas o nariz da alma podia captar
e o estômago do espírito saborear.

Dizem que, ao morrer, J.S.Bach 
aspirava o cheiro bom que vinha da cozinha
e isso era de Deus e era bom;
e com a mão, no ar, fazia gestos de quem regia
uma orquestra num grande concerto.
e isso vinha do Diabo, e era ainda melhor.