quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Um amor




                                                  Siron Franco, O Aliado, 1978

Deve haver alguém pensando em mim neste momento
- mesmo sem me saber
esse alguém me ama e me deseja
agora, neste exato momento -
um amor invisível.
Um amor que suponho e me supõe
talvez num café, fumando um cigarro,
numa varanda, molhando uma orquídea púrpura
num gramado, brincando com um cão tão vira-lata quanto meu coração
quem sabe num cinema ou num vagão de metrô
talvez em casa, sozinho, pensando em mim sem me saber, mas me pressentir
olhar perdido na vidraça que o protege da chuva que cai
- estará chovendo em meu amor? -
será noite? manhã com ventos? tarde de sol?
Em que madrugada está o meu amor neste momento?
Sei que pensa em mim e me desenha,
me projeta, me pressente, me introjeta
sim, ele existe e me deseja, 
neste exato momento em que sou rascunho
esboço frágil de seu desejo
- e nem me vê ou viu! -
deve haver um amor para mim
talvez num mercado, numa livraria folheando Shakespeare
numa casa iluminada de um bairro simples
ou na escuridão silente de um quarto 
quem sabe na poltrona de um avião
no banco de um carro, com os filhos, em silêncio
pensando em mim enquanto espera o sinal abrir
um amor que me sente e sabe também que eu existo
exatamente como sei que ele existe
e o sinto em algum lugar do mundo
talvez bebendo vinho tinto e seco
ou um suco de mangaba natural
sujando o copo com o seu batom vermelho
roendo as unhas, limpando as mãos num avental
ou mordendo o lábio, enquanto me adivinha
e me anseia, eu sei, eu sinto que esse amor me devora.
Ah, doce deus dos solitários
deve haver esse alguém que me espera
e me procura
como eu
o espero e o procuro
e a grande tragédia disso tudo é que nada
- absolutamente nada -
garante que nos encontremos algum dia.






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