quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Pornopoética












Boucher, 1740




Sangue e sêmen, nojo e gozo, paranóia e orgasmo, são elementos recorrentes na história da arte. Sexo e violência constituem um par constante nas representações artísticas, notadamente nas artes plásticas e na música. A pornografia que invade a literatura moderna, notadamente a partir dos libertinos franceses do século XVIII, tem seu lugar em língua portuguesa nas cantigas medievais de escárnio e maldizer (séculos XV e XVI).
A última flor do Lácio preserva uma vasta tradição de erotismo em versos que vão de Bocage a Glauco Matoso, passando por Gregório de Matos Guerra, no barroco colonial, Bernardo Guimarães, em nosso Romantismo, e Manuel Bandeira, em nosso modernismo. Apesar dessa bagagem e caminho, a poesia erótica sempre foi vista como algo menor, nada nobre, pitoresca. Às obras eróticas sempre esteve reservado um lugar de sorriso e desprezo, textos com fumos de extravagância e irreverência destinados ao olvido e piadas de salão. Não foi por outro motivo que um poeta “sério” como Carlos Drummond de Andrade solicitou que se publicasse apenas após a sua morte seu delicioso volume de poemas eróticos “O amor natural”.
Outro caso interessante dentre os grandes poetas brasileiros é o de Manuel Bandeira, que, em 1962, escreve “A cópula”, poema inédito até 1986, quando a revista Bric a Brac, de Brasília, após minuciosa pesquisa de estilo e grafológica, concluiu pela confirmação da autoria do texto (o poema original, manuscrito, foi enviado pelo poeta a Pedro Nava, como presente, e foi encontrado em 1986, no acervo de obras raras da biblioteca da UnB, num exemplar de Parnaso Bocagiano-Poesias Eróticas e Burlescas e Satyricas, que o mesmo Bandeira havia presenteado, em 1945, a Pedro Nava). Confirmada a autoria, a extinta Bric a Brac, no seu número II, divulga o poema, concluindo que, a partir de então, Manoel Bandeira, que havia sido simbolista, modernista e concretista, era agora também um bocagista.

A cópula

Depois de lhe beijar meticulosamente
O cu, que é uma pimenta, a boceta, que é um doce
O moço exibe à moça a bagagem que trouxe:
Culhões e membro, um membro enorme e turgescente.

Ela toma-o na boca e morde-o, incontinenti
Não pode ele conter-se e, de um jacto, esporrou-se
Não desarmou porém. Antes, mais rijo, alterou-se
E fodeu-a. Ela geme, ela peida, ela sente.

Que vai morrer: “Eu morro! Ai não queres que eu morra?!”
Grita para o rapaz, que aceso como um Diabo,
Arde em cio e tesão na amorosa gangorra.

E titilando-a nos mamilos e no rabo
(que depois irá ter sua ração de porra)
Lhe enfia cono a dentro o mangalho até o cabo.


Há  preconceito embutido na idéia de que toda poesia erótica é uma obra menor e, portanto, foge ao estatuto de “alta poesia”. Além disso, ao contrário da prosa e das artes plásticas, um “eu lírico” que fala de desejo, inegavelmente, expõe-se mais que um personagem de ficção que o faça. O poeta que finge sua libido, na verdade, parafraseando Fernando Pessoa, finge o “que deveras sente”. Uma pérola desse tipo de poesia que beira a pornografia é o soneto, cometido a quatro mãos, de Verlaine e Rimbaud:


Soneto do olho do cu (trad. José Miguel Wisnick)
Paul Verlaine/Arthur Rimbaud

Obscuro e franzido como um cravo roxo,
Humilde ele respira escondido na espuma,
Úmido ainda do amor que pelas curvas suaves
Dos glúteos brancos desce à orla de sua auréola.

Uns filamentos como lágrimas de leite,
Choraram ao vento inclemente que os expulsa,
Passando por calhaus de uma argila vermelha,
Para escorrer por fim ao longo das encostas.

Muita vez minha boca uniu-se a esta ventosa,
Sem poder ter o coito material, minha alma
Fez dele um lacrimário, um ninho de soluços.

Ele é a tonta azeitona, a flauta carinhosa,
Tubo por onde desce a divina pralina,
Canaã feminino que eclode na umidade. 

É, no mínimo, chocante ao bom gosto perceber que um cu possa ser objeto de boa poesia. Tal premissa parte da profissão de fé de um grande poeta como Manuel de Barros, para quem todas as coisas, principalmente as desprezíveis e desprezadas, são matéria de poesia. Por que não um cu? Há alguns anos fiz um pequeno poema pornográfico. À primeira vista, ou leitura, não se apresenta como tal, apesar de um dos versos ser um convite explícito ao sexo oral. Digo que não se apresenta como tal devido à roupagem sofisticada do vocabulário e da estrutura das frases. O ornamento cobrindo a podridão do ato. Não que o sexo oral, em si, seja abjeto. Longe disso. O poema trata de abuso infantil, de pedofilia, de caso real que me inspirou às imagens do poema. Ei-lo:

O Círio (Dos provérbios da carne)


Tua mão, carícia e calosidade
do trabalho de amar em sacrifício
apara as pontas, puta, parte, aspira
aponta para ti a claridade
põe um pouco de delícia nesse ofício
no santo sacerdócio, edulcora o ato
ajoelha, fecha os olhos, une teus cílios
acólito meu, chupa o meu pau
que é tua redenção, que é teu vício
eis o mistério da fé dos lascivos!


Um comentário:

  1. Que beleza de apresentação, Leo! Análise mais do que merecida ao tema. Parabéns!

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