Os velhinhos da Gamboa
(Pequena tragédia carioca)
Dizem
que a tristeza mata
mas se
morre de alegria
vou
contar-lhes uma história
aconteceu
outro dia...
encontraram
num domingo
os
dois velhinhos dormindo
num
carro abandonado
numa
rua da Gamboa
não
era sono de vivos
nem
sonho, nem pesadelo
engraçado
como a morte
é um
sono sem retorno
os
dois velhinhos no carro
e a
manhã nascendo em volta
primeiro
o viu um mendigo
sua
presença estranhou.
um
carro na rua suja
junto à
casa abandonada.
o
asfalto esburacado
como
negra renda imunda
o lixo
bordando a rua
com as
cores de seus dejetos
passaram
alguns soldados
de
braços dados com putas
depois
vieram uns meninos
que
por lá se aventuravam
tentaram
enxergar no carro
seu conteúdo
escondido.
buliram
na maçaneta
pensavam
ganhar um troco.
no
carro, dois corpos frios
sem
vida, olhos fechados.
alguns
ficaram com medo
correram
dali em bando
alguém
chamou a ambulância,
ligaram
pro delegado
quiseram
chamar um padre
um pai
de santo e um pastor
e
velas foram acesas
trouxeram
um cobertor.
para
aquecer corpos mortos?
perguntou
um cobrador
que
voltava do trabalho
e
curioso ali ficou.
alguém
rezava baixinho
outro
cuspia de lado
havia
um quê de respeito
aos
velhos corpos gelados
engraçado
como a morte
é um
sono sem retorno
os
dois velhinhos no carro
e a
manhã nascendo em volta
logo
chegaram peritos
policiais,
viaturas.
era um
barulho danado
tanto
silêncio contido.
quem
eram os tais defuntos
encontrados
na Gamboa?
que
dera neles morrer
sozinhos
naquela rua?
ninguém
ali sabe nada
é tudo
um grande mistério
diziam
ser suicídio
morte
matada não era
não
viram sinal de sangue
não
viram furo de bala.
num
carro preto, parado,
dois velhinhos, sós, dormindo.
ela,
nobreza e elegância
cabelos
brancos cuidados
colar
de perolas róseas
relíquia
de um camafeu
havia
ainda um perfume
que a
noite não consumiu.
na mão
esquerda a aliança
na
direita, um lindo anel
ele
num terno riscado
sob um
chapéu Panamá
sapato
em brilho impecável
e um
impecável barbear
uma
moldura grisalha
de
lábios frios, sem vida.
ela,
deitada em seu ombro
como
uma pomba no ninho
engraçado
como a morte
é um
sono sem retorno
os
dois velhinhos no carro
e a
manhã nascendo em volta
quem
eram os tais amantes
encontrados
na Gamboa?
souberam
logo depois
que
eram ambos casados
com
famílias diferentes
e
segredos bem guardados
ele,
com uma professora
ela,
com um advogado.
por
mais de quarenta anos
nas
fotos sempre ligados.
dentre
todos uma voz
que
não quis se apresentar
disse
que sempre se amaram
e se
viam em segredo
netos
e filhos surpresos
com
vovô, com a vovozinha.
meu
Deus, que coisa espantosa!
disseram
seus conhecidos
esses
pobres esconderam
um
amor tão proibido.
amigos
estupefatos
todos
eles conhecidos
há
anos se visitavam
eram
dois casais amigos.
como
puderam fazê-lo?
que
lhes faltava no lar?
ah,
que dor para os traídos!
o que
os há de curar?
um
julgamento velado
fez-se
logo ali no carro.
seus
corpos observados
sob o
azul da Gamboa.
há quanto
tempo se viam?
desde
quando se encontravam?
ninguém
saberá dizê-lo
melhor
calar e enterrá-los
em
cemitérios distintos
seus
corpos bem separados.
ele no
São João Batista
ela,
Jardim da Saudade
este o
castigo escolhido
os
dois corpos em degredo
definitivamente
sós
cada
um para o seu lado.
a
professora em silêncio
o
advogado calado.
o que
ninguém explicou
nem
nunca vai entender
qual o
motivo do riso
nos
lábios dois dois selado?
havia
felicidade
naquela
expressão sem vida
um
prazer absoluto
juntinhos,
de mãos unidas
como
se a eternidade
se
resolvesse em segundos
e
todos os males do mundo
naquele
encontro cessassem.
ele,
de olhos fechados
ela
deitada em seu ombro.
engraçado
como a morte
é um
sono sem retorno
os
dois velhinhos no carro
e a manhã
nascendo em volta
numa
rua, num domingo
dia
bom de estar à toa.
a
morte alegre estampada
nos
velhinhos da Gamboa.
Sensacional!!!!!!!!
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