quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

O Ninho



















Ah, Higienópolis dos fulcrais desejos brancos
Eugeniópolis cruel e amoral destes trópicos
De longe observas o exército subumano
Que te cerca à mesa dos bares
Nos sinais de trânsito
Nas portas dos restaurantes.
Devo dizer a eles o que já sabem?

Ninguém te quer por aqui, ó bestial
criatura antropomórfica
excremento vivo, indesejado
Esconde, pois, teus beiços caídos
e tuas ventas escorrendo
e parte para os infernos que
te cativam, que te alimentam
Sai, some, seca.
Vai vagar pelas ruas, sob a noite
Onde o repouso e a mansidão?
- avara sina, amara via, tua escolha –
A cidade não quer teu conforto
ela expele os teus desejos
Nos esgotos, nas vielas
Tu, um trapo, treco, troço, trash
lixo que se esconde nos escuros
no acre ácido azedume da sarjeta
Tua carne parca e podre de espantalho
- flesh-trash, resto, restolho
Entulho, detrito, dejeto -
e teus poucos dentes negros
Rebotalho, esparge o fétido hálito
de tuas entranhas
teu útero, antro; teu abraço, armadilha
O chão frio, teu pouso e morada
A chuva e o sol, teu cobertor
de papelão e jornal que nem lês
Tuas vestes imundas, zumbi real
Teus dedos queimados, olhar vermelho
A fome que não sentes, mas que te devora
E Eugeniópolis anseia teu extermínio
Tua imolação, tua internação
Tua cura ou tua desgraça
Onde o repouso e a mansidão?
O Valongo sob o minhocão no centro
da metrópole que o devora
devagar, lentamente, crudelissimamente
A nau que os arrasta pelas noites
em bandos de desesperados
Não te querem assim, ninguém
te quer por aqui, todos
te querem no olvido, no rabecão
num saco preto de lixo, corpo frio
olhar congelado
Jogado na stultifera navis dos desvalidos
Rio acima, distante, empacotado
Miúdo, carcomido, rastejando
Enquanto tu, bestial criatura
que andas com os pombos e piolhos
quase como rato sem cauda
Os pés encardidos, as unhas compridas
Sonhas. Por que sonhas?
Por que é só o que te resta
Sonhar o afeto, talvez?
O abraço de alguém?
Enrodilhado em si, feito um feto
na calçada
Só querias um ninho onde pudesses dormir
Mergulhar no esquecimento
Um ninho, um ninho.




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