sábado, 9 de fevereiro de 2019

A circunstância da memória – impressões sobre alguns sonetos de Antonio Carlos Secchin
























Não se apreende um poema numa primeira leitura. Poesia é bebida a ser sorvida lentamente pois, devido ao seu alto teor poetílico, não se a saboreia num gole apenas. É algo assim como o prato da vingança, uma iguaria que exige tempo e frieza para ser saboreada. Um poema não se entrega à primeira vista, não totalmente. Deixa-se ver, seduz, atrai, mas não se mostra aos apressados. Nunca. Uma espécie de cavalo selvagem pronto a derrubar o primeiro cavaleiro incauto, inculto, que ouse montá-lo. Que dizer então de uma antologia? Da reunião de diversos desses acepipes maravilhosos num banquete da linguagem? A leitura lenta e prazerosa de “Desdizer”, poemas reunidos de Antonio Carlos Secchin (Topbooks, 2017), tem me conduzido por caminhos surpreendentes. Vejo-me, pé ante pé, tocando a pele de seus versos, sempre desconfiado da capa de beleza aparente que teima em esconder ainda mais beleza no que oculta. Se o manifesto encanta, o latente arrebata. Na travessia que iniciei muito recentemente na poética desse ensaísta e acadêmico, obriguei-me a cumpri-la a lerdos passos, pois se o poeta é mesmo um fingidor, avalie o poeta que é teórico e crítico e que domina a palavra como quem domina um potro selvagem, nela montando e fazendo-a manter o trote ou o galope a seu bel prazer. Um leitor inseguro é sujeito provável a saborear o tombo, daí a necessidade de ser lento e atento. O volume condensa grande parte da produção poética do autor, cobrindo um período que vai de 1969 a 2017. São aforismos e versos que se espelham e refletem o que de melhor se fez na poesia do fim do século XX e começo do XXI. Secchin reuniu no volume a veia poética do vate em processo: dos textos jovens (que não demonstram a juventude e que nos faz crer que o poeta já nasceu velho, no sentido de maduro, não de mofo) àqueles que, ainda quentes pela proximidade de seu cozimento, se nos oferecem no banquete. Ative-me aos sonetos, forma fixa medular da tradição poética e que o autor domina com raro requinte. “Desdizer” nos apresenta duas seções específicas com sonetos: “Dez sonetos desconcertados”, que parecem configurar uma preparação em grande estilo para a arrebatadora seleção de “Dez sonetos da circunstância”. Nos “desconcertados”, Secchin exercita como temas o humor e a exploração do cotidiano, indo de um soneto ao molho inglês (não quero um bife, quero o amor de sobremesa) a outros dois sonetos à boa vizinhança (Troquei de celular, mas deu problema/ Amanhã pego onda em Saquarema...Eu não invejo o morador da cobertura/ o sol da tarde deve ser uma tortura). Em “Soneto da dissipação”, a presença de fantasmas nos lençóis denuncia a solidão do poeta e antecipa a constatação dorida da passagem do tempo. O “Soneto profético”, que tem toda a cara de circunstância, determina o destino trágico do homem numa deliciosa inversão de sentidos “seremos bem felizes no passado”. É justamente o tempo a matéria circunstancial dos sonetos seguintes. O passado, a memória, a passagem inexorável do tempo pelas rugas de um espírito que, eternamente jovem, vê-se aprisionado na ordem das coisas que o aproximam do fim, que testemunha o envelhecer, a decrepitude. É o menino que se vê menino, embora seu olhar maduro reconheça a perda daquela meninice em “O menino se admira” (O menino se admira no retrato/ e vê-se velho ao ver-se novo na moldura;/ o tempo, com seu fio mais delgado/ no rosto em branco já bordou sua nervura). A constatação de que não tenho tempo para ser eterno (“Repara como a tarde é traiçoeira”) é reforçada pela lembrança melancólica de um passatempo de criança em “De chumbo eram somente dez soldados” (Meninos e manhãs, densas lembranças/que o tempo contamina até o osso/fazendo da memória um balde cego/vazando no negrume do meu poço/ Pouco a pouco vão sendo derrubados/ as manhãs, os meninos e os soldados). O poeta reconhece o tempo a derrubar todas as coisas em seu trajeto irreversível.  Os dez sonetos da circunstância passam-me a nítida impressão do trágico, uma vez que lidam a sua maneira com o caminho do homem sobre a terra, sobre o nascer, o crescer, o findar-se. O poeta sabe – e nos faz saber – que em meio a nós escorre sorrateira/ a canção da matéria e da ruína” (“À noite o giro cego”). E se vibra em nós o anúncio da ruína, vibra mais ainda a lembrança, a presença incômoda de um passado que contamina coisas, cheiros, roupas, gentes, a própria casa: O silêncio transborda pelo forro/E eu já nem sei o que fazer de tanto/passado vindo em busca de socorro (“A casa não se acaba”). E quem pede socorro exatamente? Que voz será essa que, ao poeta, envia seu grito de ajuda? Talvez o menino que escondeu-se numa dobra do tempo e ficou lá, sozinho, desamparado, esperando que o adulto em que se tornou o venha buscar pela mão. Só a poesia e a psicanálise para empreenderem com sucesso essa viagem de resgate. O poeta se vê no tempo e se questiona “Estou ali, quem sabe eu seja apenas/ a foto de um garoto que morreu” e sem receio empreende o mergulho em direção à constatação de que aquela figura no retrato, transfigurada, o faz perceber “Eu o chamo de meu filho – e ele é meu pai” (Estou ali...), epifania muito similar, embora evidentemente muito pessoal, à que Vinicius de Moraes nos faz experimentar nos versos da canção “O filho que eu quero ter”. O trajeto desse menino no retrato, no espelho, na verdade desemboca no poeta em seus cinquenta anos (E para coroar todos os danos/bem-vindos sejam os meus cinquenta anos) em “Poema para 2002”. Sigo minha viagem pelos versos de Antonio Carlos Secchin, perdido e desejoso de conhecer cada porta aberta em seus poemas – e são inúmeras, como nos concedem todos os bons poemas. Devagar, lentamente, como convém a um prato que se come frio, mas que depois de comido, incendeia a alma, sigo me alimentando dos poemas de “Desdizer”.

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