terça-feira, 3 de junho de 2014

Quatro cantos de amor - Canto IV



Pablo Picasso, 1971





Levanta-te, vento do norte, vem tu, vento do sul. Sopra no meu jardim para que se espalhem os meus perfumes. Entre meu amado no seu jardim, prove-lhe os frutos deliciosos.
Cântico dos cânticos, 4
 


Num dia triste, n’escura via,
Um deus raivoso armou-se insano
num golpe apenas selou meu riso
Quebrou-se o encanto, banhou-se em pranto
O meu amado, de mim, partido
Perdeu-se adentro num rasgo fundo
um corte escuro, talho preciso
abriu-se em mim tal buraco fundo
Tão denso e triste quanto o mais profundo
Dos umbrais, infernos e abismos.
Vi-me sem ti, de repente, mudo
Foi-se o desejo, foi-se o sossego
A mansidão deu lugar ao grito
Silencioso de um coração aflito.
Onde o teu rosto? Onde o amado?
Onde o teu corpo, meu lar, meu mundo?
Sumiu no mundo, deixou-me um corte
Que ninguém vê, que ninguém pressente
Ferida exposta na pele d’alma
A tatuagem do meu desencanto
A marca ardente dos meus desenganos

Duro ser meio, ser incompleto
Hoje o que sou sem você por perto?
Onde a metade que me sorria?
Onde teu toque, teu membro, lábios?
Onde eu em ti e onde, em mim, habitas?
Hoje sou parte e por isso nada
Do que contigo eu fui um dia.
Ah, meu amado, hoje tão distante
Lembras, em que o amor ardia, o instante ?
Um só desejo, um só semblante?
Éramos dois corpos, dois amantes
Num só gozo imenso e alucinante.
Lembras, quando um éramos, o momento?
Eu dentro em ti e tu em mim eternamente
Quando eternos eram os segundos?
Hoje sou naco, parte, resto, fragmento
Daquele alegre ser que fui contigo
Antes que um deus insano e ciumento
Houvesse, por prazer, selar meu riso.






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