Pablo Picasso, 1971
Levanta-te, vento do norte,
vem tu, vento do sul. Sopra no meu jardim para que se espalhem os meus
perfumes. Entre meu amado no seu jardim, prove-lhe os frutos deliciosos.
Cântico dos cânticos, 4
Num dia triste, n’escura via,
Um deus raivoso armou-se
insano
num golpe apenas selou meu
riso
Quebrou-se o encanto,
banhou-se em pranto
O meu amado, de mim, partido
Perdeu-se adentro num rasgo
fundo
um corte escuro, talho
preciso
abriu-se em mim tal buraco fundo
Tão denso e triste quanto o
mais profundo
Dos umbrais, infernos e
abismos.
Vi-me sem ti, de repente,
mudo
Foi-se o desejo, foi-se o
sossego
A mansidão deu lugar ao grito
Silencioso de um coração
aflito.
Onde o teu rosto? Onde o
amado?
Onde o teu corpo, meu lar,
meu mundo?
Sumiu no mundo, deixou-me um
corte
Que ninguém vê, que ninguém
pressente
Ferida exposta na pele d’alma
A tatuagem do meu desencanto
A marca ardente dos meus
desenganos
Duro ser meio, ser incompleto
Hoje o que sou sem você por
perto?
Onde a metade que me sorria?
Onde teu toque, teu membro,
lábios?
Onde eu em ti e onde, em mim,
habitas?
Hoje sou parte e por isso
nada
Do que contigo eu fui um dia.
Ah, meu amado, hoje tão
distante
Lembras, em que o amor ardia,
o instante ?
Um só desejo, um só semblante?
Éramos dois corpos, dois
amantes
Num só gozo imenso e
alucinante.
Lembras, quando um éramos, o
momento?
Eu dentro em ti e tu em mim
eternamente
Quando eternos eram os
segundos?
Hoje sou naco, parte, resto,
fragmento
Daquele alegre ser que fui
contigo
Antes que um deus insano e
ciumento
Houvesse, por prazer, selar
meu riso.
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