Quero apresentar meu pequeno poema, mas antes devo dizer que ando
encafifado com um texto profano que ousei começar. Há meses, entre pausas
longas provocadas pelo desânimo, pela descrença e pela falta de inspiração, e
curtíssimos momentos de febril labuta e criatividade, venho lidando com esse
bendito híbrido (não é conto, nem crônica, nunca foi ou será romance, não sei
do que se trata). Posso confessar que o mote me veio de Machado. Não, mentira
minha. Não foi propriamente de Machado que me surgiu a idéia de escrever a
ladainha em prosa, mas de um escritor que habitava os favoritos do velho Bruxo:
o francês Xavier de Maistre e seu divertido “Viagem ao redor do meu quarto”
(1794). Comecemos pela constatação de que alguns leitores me acusam de caprichar
na dose de veneno pornográfico em alguns dos meus escritos. Injusta acusação,
grito cá com meus pentelhos. Grito em vão, pois até os amigos mais chegados
adquiriram o hábito de me presentearem com lembranças porno-eróticas que
adquirem em suas viagens. São estátuas nuas, copos fálicos, cinzeiros com
motivos pornográficos, enfim, uma parafernália de pequenos objetos
profanos que daria material suficiente para uma década de análise a fio. Devo confessar que gosto muito
desses mimos. Olho-me no espelho e aquele menino que vejo não é o velho sujo e
sacana que muitos enxergam nos textos e na vida real. Paciência. Certa vez, lá
se vão bons 26 anos, num concurso de poesias, ouvi o seguinte comentário de um
leitor acerca de singelos versos que inseri no certame promovido pelo Diretório
Central de Estudantes “Parece coisa de Jorge Amado”. Em princípio, cheio de um
preconceito alimentado pela burrice e pela ingenuidade, tratei que me xingava,
pois como poderia me comparar ao velho Jorge Amado, um não escritor? Depois,
curioso, ouvi sua explicação de que meus versos tinham muito palavrão, eram
indecentes, como a prosa do baiano. Ora, ora, ora. Começou ali a minha fama de
um escritor puto que almeja ser um puto escritor. Hoje, respeito o velho Jorge
e sua capacidade ímpar de escrever uma boa história, coisa que eu, e muitos
escritores deste país, principalmente da minha geração, carecemos absurdamente,
mas continua pregada em mim a fama de um boca suja. Há uns dias, sofrendo com
esse meu novo texto inspirado em Xavier de Maistre, comecei um longo discurso
sobre o sexo, território de Afrodite e das bacantes em transe, pasto das vacas
sagradas de nossa natureza. Batizei meu híbrido com o título paródico “Viagem
ao redor do meu saco”, e mergulhei de corpo e alma em sua escritura. Que me
perdoem os espíritos puros, que ainda há, e como diria meu mestre Manuel
Bandeira, “as virgens cem por cento e as amadas que envelheceram sem maldade”,
mas não faço concessões ao bom gosto quando escrevo e vem daí minha fama de
boca gregoriana (do poeta barroco baiano). Palavrões são doces quando bem
colocados na boca de um personagem. Nada melhor que um porra, que um cu ou uma
buceta, com u, no momento propício da narrativa. Lembro-me de Rubem Fonseca e
seus avós que nunca foderam. Ainda não terminei esta viagem em prosa, mas tenho
meio caminho andado em volta de meu saco, e foi justamente no meio dessa
caminhada que deparei-me com a lembrança feliz da “Arte de amar”, de Bandeira:
Arte de Amar
Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus — ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não
Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus — ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não
(in Belo, Belo)
Os versos desse belo poema caíram
como espada na bainha lúbrica de meu texto, em epígrafe, pois toda a discussão
do meu híbrido reside no embate entre tendões, nervos, fluidos, líquidos e
sussurros e a matéria inefável do mistério: em onde reside o desejo? Devo logo
deixar claríssimo que não tenho a mínima pretensão de descobrir de onde e para
onde vai a libido, deixando-a a cargo do “desvão imenso do espírito”. Note como
neste ponto começo a mastigar palavras que transcendem a concretude do real:
falo de desejo, espírito, libido, no momento exato em que trato de falo, orgasmo,
cópula, sêmen. Ao escrever a “Viagem ao redor do meu saco” estou, mesmo sem
querer, invadindo a seara metafísica de Deus e das almas, apesar de querer
falar de carne e corpos. Como minha matéria aqui é a linguagem e não a ação da
cama, é óbvio que meu caminho passeia pela reflexão sobre o sexo, não é,
portanto, o sexo; nem simulacro de sexo, apenas indagação, abstração,
confissão, ficção em torno de sexo. Não se goza pela palavra, quando se escreve
ou se a mastiga. Inspirado em Bandeira, escrevi meu pequeno poema que segue:
As almas,
Na cama, são cegas
Os corpos,
Em braile, se enxergam.
É isso e mais nada, por enquanto.
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